Título: A luta contra o nepotismo
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 09/02/2006, Notas e Informações, p. A3

A iniciativa moralizadora tomada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no final de 2005 com o objetivo de acabar com o nepotismo judicial, proibindo a magistratura de contratar parentes para cargos de confiança, dividiu a corporação. Embora os juízes de primeira instância tenham apoiado a decisão, muitos desembargadores não só se recusaram a acatá-la, como inundaram os tribunais nos quais atuam com pedidos de liminar para manter familiares nomeados sem concurso. Pela decisão do CNJ, todos têm de ser exonerados até o próximo dia 14 de fevereiro.

Trata-se de uma situação que só tende a agravar a má imagem do Judiciário perante a sociedade. Isto porque, ao julgar esses recursos, vários Tribunais de Justiça (TJs) não tiveram o pudor de decidir em favor de filhos, mulheres, pais, mães, tios e sobrinhos de desembargadores. Segundo a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), até 24 de janeiro, em apenas sete Estados, 284 serventuários com relação direta de parentesco com magistrados já haviam sido favorecidos por recursos. Só no Paraná, uma liminar beneficiou 52 parentes de 30 desembargadores.

Para justificar o festival de liminares, alguns Tribunais de Justiça alegaram que os familiares contratados sem concurso já estavam no cargo quando o CNJ baixou a resolução antinepotismo. Por isso, a proibição de contratar parentes só valeria a partir da data da entrada em vigor dessa medida, não atingindo os já nomeados. Estes teriam o "direito adquirido" de permanecer onde estão. Outros Tribunais de Justiça afirmaram que a proibição só poderia ser imposta por lei ordinária, e não por resolução. O principal argumento foi que o Conselho Nacional de Justiça teria "afrontado" autonomia dos Tribunais de Justiça e "invadido" as competências dos Estados, rompendo com isso o "equilíbrio federativo".

Nos próprios meios forenses, contudo, esses argumentos são discutíveis. Os tribunais superiores entendem que, por maior que seja a autonomia das unidades da Federação na organização de suas máquinas governamentais, elas não podem decidir contrariamente às diretrizes que a Constituição impõe à administração pública, das quais se destaca o princípio da moralidade consagrado pelo artigo 37, que exige concurso de provas para "investidura em cargo ou emprego público". Nesse sentido, o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já afirmou, em julgamentos anteriores, que esses princípios, "enquanto valor constitucional revestido de caráter ético-jurídico, condicionam a legitimidade e a validade dos atos estatais".

Além disso, por maior que seja a independência das Justiças estaduais, elas não estão imunes à Emenda Constitucional nº 45, que criou o CNJ. Concebida para dar um mínimo de unidade funcional a tribunais que até então atuavam como "repúblicas independentes", a emenda é formada por um conjunto de normas com validade nacional, aplicando-se indistintamente a todas as cortes. O STF também já firmou jurisprudência nesse ponto, afirmando que o CNJ, "enquanto órgão representativo do Estado unitário", representa o "Judiciário nacional", motivo pelo qual suas decisões não ferem o "princípio federativo" nem restringem as competências dos Estados.

Diante da fragilidade dos argumentos invocados por TJs interessados em manter parentes de desembargadores vivendo irregularmente à custa do dinheiro público, merece aplauso a iniciativa da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) de protocolar no STF uma ação declaratória de constitucionalidade sobre a resolução do CNJ. Com isso, a entidade, que representa os juízes de primeira instância, abrevia a discussão do problema. Enquanto nas Justiças estaduais ele demoraria anos até chegar a uma decisão de mérito, no STF a questão pode ser encerrada rapidamente. E se o acordão for favorável ao CNJ, como indica a jurisprudência do Supremo, as liminares já concedidas perdem validade imediatamente.

É uma vergonha para a Justiça que uma resolução moralizadora tomada por um de seus órgãos de cúpula suscite tanta resistência. E é ainda mais espantoso que, para obrigar seus superiores hierárquicos a respeitar a Constituição e o interesse público, os juízes de primeira instância tenham de bater nas portas do Supremo Tribunal Federal.