Título: Inflação e juros - um enfoque holístico
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/02/2006, Espaço Aberto, p. A2

O adjetivo acima é pouco usado, mas, argumentarei, muito adequado para o substantivo que o acompanha. Outra utilidade é que também circulo nos meios acadêmicos, em que as chances de levar adiante uma idéia são maiores com termos não triviais, pois atraem a curiosidade típica de gente do ramo. Procuro também reduzir o risco de que esse enfoque seja rotulado de heterodoxo - um termo desgastado nesses meios -, antes que rotuladores precipitados, comuns no Brasil, reflitam com cuidado sobre seu objeto.

Segundo meu dicionário (Houaiss), holismo é a "abordagem, no campo das ciências humanas e naturais, que prioriza o entendimento integral dos fenômenos, em oposição ao procedimento analítico em que seus componentes são tomados isoladamente".

Com base nesse reducionismo e em tantas notícias sobre o uso da política monetária, via taxa básica de juros para combater a inflação, percebe-se, dada também a ausência de outras medidas, que essa taxa é a única arma utilizada no combate e o Banco Central (BC), o único combatente. As atas de seu Comitê de Política Monetária (Copom) têm tom que presunçosamente assume esse papel, como, por exemplo, ao atribuir a sua política de juros a redução da inflação de 2004 para 2005, menosprezando a contribuição dos exportadores brasileiros, que inundaram o País de dólares, reduzindo a taxa de câmbio e os preços a ela atrelados. Em discursos sem tecnicalidades, o BC se atribui o papel de guardião da moeda, de seu valor diante do dragão da inflação, gigante ou anão. Guerreiro santo?

Ora, a inflação é um fenômeno multifacetado. Cabem humildade e clarividência ante sua complexidade e, para enfrentá-la, é preciso recorrer não apenas a uma arma, mas a um arsenal adequado, ao lado de tenacidade e eficácia na empreitada.

Mas o que faz a política antiinflacionária do governo? Omite-se quem devia liderá-la - o ministro da Fazenda -, relegando exclusivamente a um outro "médico" da área econômica, o BC, a responsabilidade de cuidar de doença que, ao contrário, exige especialistas de vários tipos. Se o presidente da República também ajudasse, ou pelo menos não atrapalhasse, seria ótimo. À equipe, contudo, não pode faltar um líder, não só no entendimento da patologia inflacionária no seu conjunto, mas indo até mesmo além do que tradicionalmente se ensina nas escolas de medicina ou de economia.

Então se aprenderia que a cultura de uma sociedade responde por vários de seus males. Ora, no Brasil ainda há elementos de cultura inflacionária a serem enfrentados apregoando-se por todos os cantos o caráter demoníaco da inflação. Mesmo os que tiverem perdas no seu combate adequado serão compensados com o prêmio da vitória definitiva, um maior crescimento econômico, possível aqui na Terra apenas com controle permanente da inflação e sem uso intenso e recorrente de remédios recessivos ou depressivos. Contra o pecado dessa cultura cabe pregar enfaticamente as virtudes da maior produtividade (produção por unidade de fator utilizado), só ela capaz de absorver pressões de custos sem aumento de preços, com ganhos realmente econômicos. A propósito, vale lembrar que o PIB per capita de um país nada mais é que a produtividade média de seus cidadãos.

Em laboratórios de análise clínico-econômicas bem montados, um diagnóstico digno do nome mostraria que nossa inflação tem também origem fiscal, por meio de gastos públicos que pressionam a demanda, de carga tributária que eleva custos e preços e de uma dívida governamental parcialmente responsável pelos juros elevados, os quais também pressionam nessa direção. Há também efeitos de decisões administrativas e/ou políticas na gestão de preços e tarifas públicas, bem como da política de rendimentos, como no recém-anunciado maxiaumento do salário mínimo. Há ainda a pressão de demanda decorrente do crédito, como a recente e forte expansão do consignado, além de setores com forte concentração de poder econômico, com poder sobre a oferta de bens e serviços e, assim, sobre preços acima dos ditados pela livre concorrência.

Contra essas e outras causas que emergiriam se a inflação fosse examinada holisticamente, o BC seria realmente santo milagroso se conseguisse combatê-las só com a taxa básica de juros, sem efeitos indesejáveis. Onipotente, e não sendo de sua alçada ou de seu interesse esses efeitos colaterais, como a redução do crescimento econômico, aplica overdose dessa perigosa droga, com o que, no seu equívoco, a própria prescrição também é uma droga. Míope mesmo na sua área, o BC não cuida sequer da pertinência dos preços da intermediação financeira nem aceita que outros do governo façam isso.

Assim, se for para tratar seriamente a inflação, e não só por esse simulacro de política antiinflacionária assentado apenas na monetária, cabe um enfoque holístico, que cuide da inflação com o BC e seus juros, mas reduzindo o papel dele mediante recurso paralelo a outras políticas, em particular a fiscal, a de rendimentos e a creditícia, no plano macroeconômico. No microeconômico cabe reexaminar os preços e tarifas administradas pelo setor público e conter os abusos do poder econômico mediante mecanismos de defesa da concorrência e/ou recurso a menores tarifas de importação para estimulá-la.

Seria heterodoxo esse enfoque? Heterodoxo, voltando ao dicionário, só no sentido de estar em desacordo com o grupo que controla a política econômica do governo e seus acólitos do lado de fora, dos quais reafirmo a dissidência. Entretanto, no sentido de estar em desacordo com teorias econômicas e práticas bem-assentadas de política governamental de combate à inflação, aqui e alhures, hoje e no passado, heterodoxa mesmo, beirando a heresia, é a política antiinflacionária atual, pois mal se apóia numa visão parcial e limitadíssima da inflação nas suas causas e nos seus remédios.