Título: Deus caritas est
Autor: Gilberto de Mello Kujawski
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/03/2006, Espaço Aberto, p. A2

Ratzinger surpreende. Do papa alemão se esperava que sua primeira encíclica versasse sobre moral e bons costumes, fé e descrença, a escalada do secularismo, temas preferidos do discurso conservador. Contrariando todas as expectativas, Bento XVI subscreve sua primeira carta-encíclica focalizando o amor como núcleo da fé cristã. Esta, a primeira grande novidade, desconcertante para cristãos e não-cristãos. O pontífice alemão riu por último, provando que sob aquela bela e bem tratada cabeleira branca - com algo de magnética - palpita o cérebro de um poderoso teólogo.

Outra novidade é o estilo de redação, um estilo coloquial, de conversa com o leitor, bem diferente do tom docente e magistral de outros sumos pontífices, inclusive o nosso grande João Paulo II.

Mas as inovações principais estão no conteúdo da mensagem papal: primeiro, a assombrosa reabilitação de Eros no espírito do cristianismo e sua subsistência no próprio cerne do amor cristão; a idéia de que o amor consiste em algo mais do que um mero "sentimento"; e a necessidade do amor (caritas) mesmo na sociedade mais justa, em contraposição ao que prega o soberbo socialismo marxista.

A carta começa por lembrar as três palavras da língua grega relacionadas ao amor: "eros" (amor entre homem e mulher), "philia" (amor de amizade) e "agape" (o amor como doação de si, buscando o bem do ser amado). Pois bem, o inédito, o espantoso é que Bento XVI declara, com todas as letras, que o eros, o amor entre o homem e a mulher, "sobressai como o arquétipo de amor por excelência, de tal modo que, comparados com ele, à primeira vista todos os demais tipos de amor se ofuscam". Eros, erótico, erotismo são palavras que renovam seu significado quando se considera eros na sua acepção mais legítima, que não se limita ao mero desejo sexual; eros vai além do desejo animal; numa livre interpretação, é uma pulsão ascendente, um desejo com asas (como em Platão); o inebriamento de todo o nosso ser, que não se contenta com um momento de satisfação carnal, mas que busca a felicidade em máxima plenitude e para sempre: "O amor promete infinito, eternidade - uma realidade maior e totalmente diferente do dia-a-dia da nossa existência." O desejo com asas ultrapassa o corpo, unifica-o com alma e se lança para a vida eterna.

O amor erótico é êxtase, na acepção etimológica da palavra: "Êxodo permanente do eu fechado em si mesmo para sua libertação no dom de si." À medida que o eu se liberta de si mesmo em busca de outras realidades, topa com Deus e com o próximo, sublimando-se em agape. Na agape subsiste o eros como desejo daquilo que nos falta. Sim, o eros pulsa em agape e por isso, na realidade, nunca se separam completamente um do outro.

Aqui não resisto à tentação de lembrar que na pessoa de Santo Agostinho se integram, de forma magnífica, as três dimensões do amor - eros, philia e agape. Toda frase de Santo Agostinho, mesmo dirigida a Deus, é percorrida por um frêmito erótico inconfundível que contagia e arrebata o leitor: "Sero te amavi, pulchritudo, tam antiqua et tam nova!" ("Tarde te amei, ó Beleza, tão antiga e tão nova!") Por isso reconhece Ortega em Santo Agostinho "talvez o temperamento mais gigantescamente erótico que já existiu".

Será o amor um "sentimento", como geralmente se diz? Não é o que ensina a nova encíclica. "Revela-se com clareza que o amor não é apenas um sentimento. Os sentimentos vão e vêm." O amor pode vir acompanhado de sentimentos ("Marías"), mas é muito mais que um sentimento. O amor é uma potência que nos arrebata por inteiro, uma inclinação de todo o nosso ser: "Pondus meum amor meus", ou meu amor é o meu peso (Santo Agostinho). Para onde ele se inclina nós o seguimos, um centro de gravitação.

Deus é a fonte de todo amor porque nos amou primeiro. Agape culmina na caritas, a forma mais legítima do amor cristão. "Amor a Deus e amor ao próximo são inseparáveis, constituem um único mandamento." A caridade (caritas) constitui-se na reciprocidade entre o amor de Deus pelo homem e o amor do homem por Deus. Esta é a novidade maior do cristianismo. O primeiro mandamento é amar a Deus sobre todas as coisas. O segundo, amar ao próximo como a nós mesmos. Mas amar ao próximo "em Deus". Assim, Deus se faz o horizonte de todo o amor.

Será que a justiça, a ordem social justa, pode substituir a caridade? Este é o pensamento dominante a partir do século 19, sustentado sobretudo pelos marxistas. A esta simplificação inadmissível, responde assim o pontífice: "O amor - caritas - será sempre necessário, mesmo na sociedade mais justa. Não há nenhum ordenamento estatal justo que possa tornar supérfluo o serviço do amor. Quem quer desfazer-se do amor se prepara para se desfazer do homem enquanto homem. Sempre haverá sofrimento que necessita de consolação e ajuda. Haverá sempre solidão." Explica a encíclica que a Igreja não pode nem deve ficar à margem da luta pela justiça. Deve inserir-se nela pela via da argumentação racional, despertando as forças espirituais da sociedade. Mas a sociedade justa não é obra da Igreja, e sim do Estado. De maneira delicada, o papa sugere que a Igreja não tem de levar a política a reboque na construção da justiça social, como pretende a teologia da libertação. A justiça social é função do Estado. À Igreja e ao clero cabem o papel de coadjuvante "pela via da argumentação racional", isto é, sem nenhum esboço de ação direta.

Atacar a caridade como sistema de conservação do status quo é uma filosofia desumana, diz a encíclica. "O homem que vive no presente é sacrificado ao moloch do futuro - um futuro cuja efetiva realização permanece pelo menos duvidosa." A caridade? A caridade é "um coração que vê". "Este coração vê onde há necessidade de amor e atua em conseqüência." Não é possível definição mais simples e mais verdadeira da caridade do que esta - "um coração que vê".