Título: Fale a Justiça Eleitoral
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/02/2006, Notas e Informações, p. A3

Se a tradição institucional brasileira optou pela existência de uma Justiça especificamente eleitoral - o que não é obrigatório nas democracias do mundo contemporâneo - foi para que o processo eleitoral, em nosso país, fosse cuidado com redobrado zelo. E isso não apenas em relação à eficiência dos sistemas de votação e apuração de votos - que já chegou a verdadeiro requinte de automação eletrônica, admirada e imitada pelo mundo -, mas, sobretudo, no propósito de estabelecer a melhor condição de igualdade de oportunidades entre os concorrentes a cargos eletivos, para que uns não possam sobrepujar outros, eleitoralmente, graças a meios espúrios, sejam os derivados do poder econômico, os atrelados a máquinas administrativas, sindicais ou governamentais de qualquer espécie. É para isto que existem as restrições, os prazos, as contabilizações obrigatórias, os limites, as desincompatibilizações e tudo o mais que delimita a atuação de candidatos e partidos políticos.

Nossa legislação eleitoral tem complicações, indefinições e exageros que talvez devessem ser depurados a partir de amplo debate entre os partidos, no Congresso e pela opinião pública até que se chegasse a um consensual aperfeiçoamento. Um certo sistema censório, por exemplo, imposto aos veículos de comunicação eletrônica de massas (rádio e TV), nos períodos do "horário gratuito" (que, aliás, está longe de o ser), é rigidez que não se encontra em processos eleitorais de outras democracias. Há que se convir, no entanto, que, com todas as suas imperfeições, a legislação eleitoral vigente tem que ser rigorosamente cumprida, sob pena de a existência da Justiça Eleitoral não ter mais sentido.

Certamente é o fato de o uso irregular de recursos em campanhas eleitorais (o caixa 2 ou "recursos não contabilizados", na novilíngua petista) estar muito longe de ser posto a cobro - apesar de todo o trabalho das CPIs e do Conselho de Ética da Câmara dos Deputados - que tem levado à doce despreocupação de muitos políticos em relação ao assunto. Mais do que à reincidência, a certeza da impunidade leva à tranqüilidade no delinqüir, ao desrespeito à lei com o maior caradurismo, ao cinismo e até ao deboche. Veja-se isto: durante a inauguração da nova sede do PL no Recife, deputados brincavam com o fato de a poucos metros dali haver uma agência do Banco Rural, dizendo: "Bem que a gente podia cavar um túnel..."

O PSDB entrou com mais duas representações no Tribunal Superior Eleitoral - até agora são sete - contra o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem acusa de estar fazendo campanha antecipada, desrespeitando a lei. "O presidente confessou um crime publicamente, ao dizer que o homem público faz campanha 365 dias por ano" - afirmou o líder tucano no Senado, Arthur Virgílio. Mesmo que se admita que a estapafúrdia declaração de Lula não passe de um "arroubo retórico" - como a ela se referiu o ministro do STF (que presidirá o TSE nas próximas eleições) Marco Aurélio Mello -, há fatos incontestáveis a comprovar que o presidente da República está, efetivamente, em plena campanha eleitoral. Exemplo: ao discursar em Parnaíba (PI), em ato na Universidade Federal do Piauí, Lula disse que "a partir de 2007 vai criar cursos de biomedicina, fisioterapia, psicologia e licenciatura em matemática". Como seu mandato termina em 2006, seu compromisso é, certamente, uma promessa de campanha. Portanto, ele falou como candidato.

O tom dos discursos, o emprego de recursos humanos e materiais do governo - inclusive do avião presidencial - para um vasto programa de visitas a diversos municípios e vários Estados (em apenas dois dias visitou sete cidades), tudo isso constitui um somatório inegável de indícios de que o presidente Lula está em plena campanha - mesmo tendo a "esperteza" de negar a condição de candidato, como se só uma declaração sua, nesse sentido, pudesse levar o Ministério Público ou a Justiça Eleitoral a responsabilizá-lo por infringência à lei eleitoral.

Por mais que possa ser "fronteiriça" a separação entre um ato de governo e um ato de campanha eleitoral de um governante - como também disse o ministro Marco Aurélio -, a Justiça Eleitoral há de ter discernimento para definir, com precisão, os limites de atuação de governantes engajados na própria reeleição. Pois, se não o tiver, melhor será que se a extinga - para a economia de custos em favor do aperfeiçoamento da Justiça Comum.