Título: Desabastecimento iniciou fracasso
Autor: Márcia De Chiara
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/02/2006, Economia & Negócios, p. B4,5

Economista Edmar Bacha relembra reunião de maio de 1986, quando Plano Cruzado começou a fazer água

O economista Edmar Bacha se lembra de como, anos depois do fracasso do Plano Cruzado, o ex-presidente José Sarney, em um encontro em Nova York, comentou com ele quando e como percebera que o plano estava condenado. Segundo Sarney, isso ocorreu na famosa reunião de Carajás, em maio de 1986, quando ele ouviu Bacha pronunciar um monossílabo impublicável para o então ministro do Planejamento João Sayad, que poderia ser traduzido em linguagem familiar como "ferrou".

Na verdade, Bacha estava aterrorizado após constatar que mais de 30% dos itens da cesta dos índices de inflação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do qual era presidente, já não eram encontrados durante a coleta de preços. "Havia uma explosão da demanda e uma escassez progressiva da oferta", relembra o economista.

Bacha teve participação decisiva nas duas principais tentativas de estabilização da economia brasileira nos últimos 20 ano: os Planos Cruzado e Real. Em entrevista ao Estado, ele contou quais as grandes lições extraídas do fracasso do primeiro que foram decisivas para o sucesso do segundo:

MARGEM DE MANOBRA

Para Bacha, o maior erro do Plano Cruzado foi ter estabelecido um gatilho salarial que garantia reajustes integrais automáticos sempre que a inflação passasse de 20%.

Nesse tipo de plano em que há congelamento, ele explica, é fundamental ter margem de manobra para corrigir as distorções de preços depois de algum tempo. Isso, naturalmente, provoca alguma inflação. Se um gatilho de 20% dispara, porém - como de fato ocorreu -, a inflação volta com toda a força. "O Plano Cruzado teve essa infelicidade de colocar um gatilho no meio do caminho, e aí o que houve foi uma busca desesperada de encontrar uma saída que não existia, para evitar a armadilha do gatilho, para impedir que ele disparasse", diz o economista.

RIGOR FISCAL E MONETÁRIO

A segunda grande lição, para o economista, é que um programa de parada súbita de inflação vai necessariamente levar a uma explosão de demanda privada. Dessa forma, é preciso haver uma política fiscal restritiva para que a contenção dos gastos do governo compense o aumento de demanda das famílias e do setor privado.

Quando o plano já estava fazendo água, recorda-se Bacha, ele chegou a propor um plano de demissão de 20% dos funcionários públicos, e se lembra do seu diálogo com Sayad sobre o assunto: "Eu tinha 12 mil funcionários no IBGE, e disse que partiria na frente, demitindo 3 mil. Esse era o tipo de choque que precisava ser dado, do jeito que as coisas já estavam naquela altura. O Sayad, porém, me disse: 'Esquece, não dá nem para pensar'". Outro aspecto importante, que foi negligenciado no Cruzado, é dar independência ao Banco Central para fazer uma política monetária apertada, para conter a demanda.

SER INDISPENSÁVEL

Segundo Bacha, em um plano de estabilização, um dos maiores riscos que os economistas correm é o de ser instrumento dos políticos, que os usam para a etapa inicial, que rende mais popularidade, e os dispensam quando são necessários os ajustes mais difíceis, porém indispensáveis.

Para ele, "em termos políticos, a lição que eu tomei é que eu nunca mais iria para o governo, a menos que eu fosse parte da estrutura de comando do plano". "Não tem esta conversa de ser tecnocrata. Eu iria com um projeto político."