Título: País tem 524 mil cargos de confiança, que emperram luta contra nepotismo
Autor: Gabriel Manzano Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/02/2006, Nacional, p. A4

É neles que encontram abrigo os irmãos, filhos, primos, cunhados e amigos dos detentores de poder

Enquadrado pela Justiça, malvisto pela opinião pública, o nepotismo, ainda assim, está muito bem de saúde e manda dizer que tem pela frente uma vida longa entre os brasileiros - pelo menos enquanto União, Estados e municípios mantiverem intacta a gigantesca estrutura que lhe dá vida: os cargos de confiança. Eles são mais de meio milhão - segundo um cálculo feito pelo Estado, com a ajuda de estudiosos do assunto, chegam a pelo menos 524 mil - distribuídos de norte a sul do País, por grandes estatais ou modestas subprefeituras dos grotões. Ali obtêm abrigo, com freqüência, irmãos, filhos, primos, cunhados, amigos e subalternos dos eleitos e nomeados, em todas as esferas de poder.

Não há dados completos nem um levantamento específico sobre o tamanho atual dessa estrutura. O Brasil é muito grande, o custo de uma sondagem desse tipo seria alto e as conclusões não interessam a muita gente. Mas já se sabe que só na área federal esses cargos de confiança somam 70 mil, distribuídos pelos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Nas 5.562 cidades brasileiras trabalham, ou não, para as prefeituras outros 350.230 funcionários em cargos de confiança. Os dados são do Perfil dos Municípios Brasileiros 2004, divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Não se conhece um índice equivalente para as administrações estaduais. Mas como nos dois anteriores a porcentagem desses cargos sobre o total de funcionários fica entre 5% e 7%, um cálculo cauteloso, de uns 4% nos Estados, daria mais 104 mil servidores. Assim, a conta final, que nesse último item é apenas uma estimativa, chega a 524 mil brasileiros.

"É um exagero, sem dúvida", afirma o economista e professor José Luiz Pagnussat, da Escola Nacional de Administração Pública, em Brasília. "Mas o pior não é o aspecto moral ou comportamental", adverte. "O maior preço que se paga é que, cada vez que se troca um chefe, grande parte da equipe é mudada, e essa alta rotatividade atrapalha a execução de políticas de médio ou longo prazo. O resultado é a ineficiência." Como comparação, ele conta que, quando se troca um governo num regime parlamentarista europeu, não se mudam mais do que 50 cargos, normalmente.

E esse mais de meio milhão não é um cálculo definitivo. Nele não foram incluídos os funcionários e serviços terceirizados e as contratações decorrentes de licitações para obras, que são corriqueiros e poderiam tornar o número bem maior. Ficaram de fora porque não fazem parte da estrutura permanente do serviço público.

CASOS E CASOS

Cargo de confiança no serviço público, alertam muitos juízes, políticos e estudiosos do assunto, não é necessariamente sinônimo de incompetência ou de corrupção. "O que se pode dizer, apenas, é que ele é uma porta aberta para isso", adverte o professor François Bremaeker, coordenador de dados do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam).

Ninguém pensou em nepotismo, por exemplo, quando o presidente John Kennedy, nos anos 60, nomeou seu irmão Robert para secretário de Justiça dos Estados Unidos. Ou quando o economista André Franco Montoro Filho foi trabalhar com seu pai no governo de São Paulo, nos anos 80.

No entanto, a visão que predomina no País é de que a confiança em questão é um compromisso individual, de fidelidade do funcionário ao benfeitor, e não a confiabilidade e os princípios éticos no trato de assuntos do interesse público. "O problema central é a forma como esses cargos são tratados pela Constituição de 1988, que não estabelece nenhum tipo de limite para o preenchimento dessas funções", avalia o deputado Miro Teixeira (PDT-RJ).

PORTEIRA

O artigo 37, que define o assunto, transformou-se em uma arma preciosa dos que querem tirar vantagem. Ele determina, de início, que as nomeações devem atender a princípios de "impessoalidade, moralidade e competência". Mas seu inciso II abre a porteira ao definir que essas nomeações dependem de concurso público, "ressalvadas as nomeações para cargo em comissão...", sem precondições ou limites. A saída para o impasse, diz Miro, é "criar um limite, um porcentual bem restrito", para essas indicações, em cada caso específico.

Isso pode ser feito, se o Congresso quiser, na emenda constitucional sobre o nepotismo que tramita na Câmara e será levada a debate em março. Miro já conversou a respeito com o relator da emenda, Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP). "Sou otimista. Acredito que é possível, sim, formar um serviço público de qualidade, baseado em competências e na impessoalidade", diz o deputado pedetista.

Mas nessa batalha por cargos, o controle legal é uma parte do jogo e contra ele os defensores do clientelismo já têm um antídoto. Como assinala o presidente da Confederação Nacional dos Municípios, Paulo Ziulkoski, "não há como detectar o indireto, ou triangular" - parlamentares, juízes ou executivos trocam entre si os parentes e amigos a empregar. Ziulkoski diz saber de casos em que "um prefeito emprega o filho do prefeito da cidade vizinha, e este emprega o seu."

O nó da questão, acrescenta, está em Brasília. "É no Congresso que se tomam decisões sem saber do impacto que terão em lugarzinhos distantes. Todas as Câmaras, por exemplo, estão autorizadas por lei a gastar até 8% do orçamento municipal. Há lugares onde isso é quase igual ao que se gasta em saúde."

Na prática, afirma ele, um grande trunfo contra o nepotismo tem sido a Lei de Responsabilidade Fiscal. "Em muitos Estados, como ocorre agora no Ceará, o Ministério Público está visitando cidades do interior", ressalta. Esses promotores orientam os prefeitos e cobram de perto a execução das normas da Lei Fiscal.