Título: Urge um projeto para o País
Autor: Gilberto Dupas
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/03/2006, Espaço Aberto, p. A2

Nos últimos 15 anos, alguns países da periferia do capitalismo mundial souberam interpretar corretamente a nova lógica global e cresceram em ritmo forte, aproveitando o ciclo de expansão econômica mundial e as baixas taxas de juros. O Brasil, empolgado com a idéia de que bastava abrir, privatizar e estabilizar, ficou para trás. Hoje vemos a grande onda de crescimento mundial, puxada pela China, passando por nossas cabeças - e não soubemos surfá-la. Foi assim no governo FHC, idem com Lula. No atual governo, embora com números melhores na economia - em parte, pelo quadro internacional -, algumas ações sociais mais agressivas e uma retórica externa vivaz, nenhum projeto nacional consistente que inclua uma visão estratégica de inserção global saiu do forno.

A lição importante é a de que a globalização, ao lado de seus efeitos perversos sobre emprego e renda, também gerou oportunidades para certos países que adotaram políticas adequadas; e que o Brasil não fez as escolhas apropriadas para enfrentar as novas realidades. É fundamental tentar identificar como certos países obtiveram bons resultados onde tantos outros, como nós, fracassaram.

Merecem especial atenção a China, a Índia, a Coréia do Sul e o Chile. Todos eles cresceram nos últimos 15 anos muito mais que os péssimos 36% acumulados pelo Brasil: a China, 278%; a Índia, 129%; a Coréia, 123 %; e o Chile, 124 %. O desempenho original desses países parece ter vindo da combinação de alguns fatores. Antes de tudo, em maior ou menor grau, eles não abdicaram de ter um projeto nacional de inserção na economia global, nem da coordenação do Estado no estabelecimento de políticas de desenvolvimento, várias delas específicas para alguns de seus setores industriais e de serviços. Também houve controle sobre os fluxos de capital externo e direcionamento de créditos. Finalmente, difundiu-se amplamente a educação em quantidade e qualidade, focada em desenvolvimento tecnológico.

A China cresce porque um governo forte e lúcido combina planejamento com pragmatismo, objetivando tornar o país o centro da manufatura mundial e uma potência a médio prazo. Utilizando o poder de mercado e as reservas externas do país, ela constrói uma aliança "tensa" e inteligente com os Estados Unidos. Sua entrada na Organização Mundial do Comércio (OMC) convive com um sistema de preços relativos internos controlados e uma imensa produção de bens "piratas"; seu produto interno bruto (PIB) já se igualou ao da França e ao do Reino Unido e está se aproximando ao da Alemanha, mantendo uma taxa de expansão muito maior que a deles. Em apenas 30 anos, a China teve o número de universitários aumentado de 1,4% para 20% da população total. Deng Xiaoping, ao lançar sua reforma, teve que inventar um caminho original de "industrialização tardia". O modelo chinês é extremamente aberto ao exterior; e as suas exportações incorporam cada vez mais valor e tecnologia gerada por 53 centros de inovação criados pelo Programa Torch, a partir de 1988. Já a Coréia do Sul, de um patamar pobre equivalente ao do Brasil, no período de menos de duas gerações se tornou um país rico, participando ativamente dos setores globais mais dinâmicos, com grandes corporações e marcas próprias de elevado conteúdo tecnológico. Fazendo parcerias eficazes com o Japão e os Estados Unidos, sucessivos governos conseguiram mobilizar o capital nacional ao mesmo tempo que liberalizavam a economia. Na Índia, o bom desempenho decorre de um processo de abertura cuidadoso, focado em setores onde o país possui uma elevada vantagem competitiva. Tirando proveito da disseminação da língua inglesa e de uma ampla massa de profissionais da área de ciências exatas, o país se transforma no grande centro mundial de serviços, desde plataformas mundiais de atendimento até a liderança em desenvolvimento de softwares e de novos medicamentos. Finalmente o Chile, o primeiro latino-americano a adotar políticas neoliberais - transformando-se na "menina-dos-olhos" dos seus defensores -, teve bom crescimento e estabilidade econômica, embora mantivesse um pesado nível de pobreza e piorasse sua distribuição de renda interna. Mas é importante observar que o Estado chileno mantém a propriedade das minas de cobre, seu principal item de exportação, exerce forte controle sobre os fluxos de capital externo para evitar os efeitos dos capitais "voláteis", tem metas de inflação mais elásticas que o nosso Banco Central, e mantém juros de primeiro mundo.

Enquanto isso, o Brasil se aproxima de uma nova eleição majoritária sem saber como transformar seu excelente desempenho exportador recente em garantia de altas taxas de crescimento. A competitividade dos nossos setores mais dinâmicos vai sendo erodida com a queda exagerada do dólar e mantemos uma absurda taxa de juros reais que faz crescer perigosamente a dívida interna. O mercado financeiro comemora a proximidade do tal investment grade e ganha muito dinheiro na arbitragem com nossos juros; o dólar barato incentiva nossas empresas a investir no exterior, gerando empregos lá fora. A informalidade no mercado de trabalho permanece altíssima, a pobreza também, e os investimentos - condição para maior crescimento - ficam freados no setor privado pelas taxas de câmbio e de juros e, no setor público, pela obrigação de superávit. Na verdade, satisfazemo-nos hoje com a meta medíocre de crescer um pouco mais ou um pouco menos de 3% ao ano - a média dos 15 anos foi 2,1% -, quando necessitamos de um mínimo de 5% para reequilibrar nossas contas e combater a pobreza. Nenhuma discussão mais profunda apareceu até agora sobre um projeto para o país que podemos ser. Que inveja da China, da Índia e da Coréia. E também do Chile!