Título: A praga do nepotismo
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/03/2006, Notas e Informações, p. A3

Além de levar à demissão de 2.673 parentes de magistrados contratados sem concurso público, a ofensiva do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para acabar com o nepotismo no Judiciário teve o mérito de recolocar na ordem do dia o eterno problema da moralização da administração pública, mobilizando a sociedade para pressionar o Congresso a aprovar a aplicação da mesma medida nos demais Poderes.

Uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC nº 334/96) elaborada com esse objetivo tramita há dez anos na Câmara. Já passou pelas comissões técnicas da Casa, mas até hoje não foi enviada ao plenário.

Assim como a resolução baixada pelo CNJ, cuja constitucionalidade foi referendada há duas semanas pelo Supremo Tribunal Federal, a PEC proíbe a contratação sem concurso de parentes de até terceiro grau em todas as instâncias do Legislativo e do Executivo. Ela também proíbe as empresas que prestam serviços a órgãos estatais de empregar parentes de parlamentares ou de funcionários públicos com cargo de chefia - o chamado nepotismo terceirizado. E ainda veda o nepotismo cruzado, que ocorre quando uma autoridade contrata parentes de outra para cargos de comissão ou de confiança, a pedido desta. A pena prevista é de perda de mandato para quem exerce mandato eletivo e demissão por justa causa para funcionário que ocupa cargo de chefia.

Além disso, para fechar as brechas para todas as formas de nepotismo, a PEC estabelece outras medidas oportunas, tais como: as funções gratificadas no âmbito da administração pública devem ser ocupadas exclusivamente por funcionários de carreira; 85% dos cargos de direção e 50% dos cargos de assessoramento serão ocupados por burocratas especialmente aprovados em concurso público; anulação sumária do ato de contratação de parente, com o enquadramento do responsável pela nomeação por crime de improbidade administrativa.

Como não há levantamentos completos sobre o número de parentes empregados sem concurso nos três Poderes, é difícil saber quantas pessoas serão atingidas por essa PEC, caso venha a ser aprovada. Após consultar dados do Ministério do Planejamento relativos à União e pesquisas do IBGE relativas aos municípios, o repórter Gabriel Manzano Filho, em reportagem publicada no Estado de domingo passado, constatou que, dos 8,5 milhões de cargos hoje existentes em todos os níveis e esferas do funcionalismo público, 524 mil são de confiança ou em comissão, isto é, de livre nomeação. É neles que encontram abrigo esposas, irmãos, pais, filhos, tios, cunhados e primos de quem tem poder de nomear.

Desse total não constam os parentes que trabalham em empresas terceirizadas e as contratações decorrentes de licitações para obras. Eles ficaram de fora porque não fazem parte da estrutura permanente do serviço público. Por mais conservador que seja esse cálculo, ele dá a dimensão do problema do nepotismo nas instituições governamentais. Só o Executivo federal tem 19 mil cargos desse tipo, com salários que variam entre R$ 3,6 mil e R$ 9,8 mil. Ao todo, são 70 mil cargos na União, 104 mil nos Estados e 350 mil nos municípios.

Para efeitos comparativos, o Executivo federal dos Estados Unidos tem só 3,5 mil cargos de confiança. Na França, o presidente e o primeiro-ministro contam com apenas 500 postos de livre indicação e, no Parlamento desse país, até os assessores técnico-legislativos têm de passar por concurso. Além disso, as regras para a indicação dos nomes para funções de confiança são rigorosas, não bastando a justificativa comumente dada por dirigentes, parlamentares e magistrados entre nós, de que seus parentes são "competentes". Nesses países, argumentos como o da desembargadora Elizabeth Mendonça, de que empregou dez parentes no Tribunal de Justiça de Alagoas para não ter de "trabalhar com inimigos", não ferem apenas a moral ou o decoro. Ferem a legislação, com conseqüências graves para quem os invoca.

Graças ao Conselho Nacional de Justiça, o Judiciário foi o primeiro dos Poderes a enfrentar para valer o problema do nepotismo. É preciso, agora, que o Executivo e o Legislativo façam o mesmo. E isso só ocorrerá se a sociedade se mobilizar para levar a Câmara a votar a PEC que lá tramita.