Título: A Ásia no radar dos EUA
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Fonte: O Estado de São Paulo, 03/03/2006, Notas e Informações, p. A3

No papel, a visita de 48 horas do presidente George W. Bush à Índia produziu o acordo de cooperação nuclear entre Washington e Nova Délhi que o dirigente americano teve a temeridade de prometer ao primeiro-ministro da Índia, Manmohan Singh, quando de sua visita aos Estados Unidos em julho do ano passado - segundo as interpretações correntes, para promover os interesses estratégicos do país no colosso asiático que já vem sendo chamado "a nova China" e para reavivar a indústria do setor nos EUA.

Ocorre que um acordo do gênero com uma nação que se recusou a assinar o Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP) precisamente para poder ingressar no clube atômico (o que logrou com as suas cinco explosões subterrâneas em maio de 1998) é quase a quadratura do círculo: além da lei americana, convenções assinadas pelos EUA autorizam a transferência de tecnologia nuclear apenas a países que renunciem à posse ou à produção de armas atômicas e subscrevam o TNP.

Os indianos não pretendem fazer nem uma coisa nem outra - e ainda querem ajuda americana para um número muito maior de reatores do que os quatro assumidamente destinados à geração de eletricidade. Seja qual for o desfecho dessa questão em particular - eventuais concessões de Bush terão de passar pelo crivo do Capitólio - a sua visita à Índia, a primeira em seis anos na Casa Branca, configura o reconhecimento, ainda que tardio, do imperativo, para os EUA, de estreitarem laços diplomáticos e econômicos com o pujante vizinho da China.

A Índia a ela se assemelha na assombrosa arrancada para o crescimento, combinando setores exportadores tradicionais, como a indústria têxtil, com formidáveis avanços em tempo recorde na tecnologia de informação, sobretudo na área de softwares. E tem, em relação à China, a vantagem de ser uma democracia com instituições profundamente enraizadas. É a maior do globo e a única na região jamais interrompida desde a sua instalação no fim do domínio inglês. Como se isso fosse pouco para colocar a Índia no topo da agenda americana mundial, o país tem a segunda maior população islâmica do planeta (depois da Indonésia).

O governo americano parece indicar que vê na Índia um contraponto em potencial para a ascensão chinesa no Oriente - o que, além de alimentar a convicção de Pequim de que um dos maiores objetivos da política externa americana é conter a caminhada chinesa rumo à condição de superpotência mundial, subestima os cálculos indianos de conveniência nas complexas relações de cooperação e conflito daquela parte do mundo, envolvendo ainda o Paquistão, outro sócio do clube nuclear. Sem falar que a vigorosa expansão das exportações indianas para os EUA e a terceirização de serviços de empresas americanas para a Índia estão fadadas a criar atritos nas relações comerciais entre ambos.

De todo modo, o fato é que os EUA estão mudando acentuadamente as suas prioridades na arena internacional, para dar conta das novas realidades do crescente poderio econômico da China e Índia - ora parceiros, ora rivais políticos de Washington - e do que o governo Bush denomina a "guerra de longa duração" contra o terrorismo. Expressão dessa mudança é a decisão do Departamento de Estado de aumentar o seu corpo de enviados à Ásia (mais 15 diplomatas na China, mais 12 na Índia) e de diminuir a sua presença na Europa (menos 38, dos quais 10 na Rússia).

O recém-aposentado diretor-geral do Departamento, Robert Pearson, ressalta que em meados do século europeus e americanos somarão apenas 10% da população mundial. As grandes mudanças tendem a acontecer sobretudo "nos 15 a 25 países que tentam alcançar o nível das modernas democracias industriais". Decerto ele considera o Brasil parte desse grupo, embora o País aparentemente tenha ficado de fora do processo de ampliação dos quadros diplomáticos americanos na América Latina.

Dos 15 representantes adicionais a servir na região, informa o editor diplomático do Guardian de Londres, Ewen MacAskill, em reportagem transcrita ontem neste jornal, 4 irão para a Bolívia, 4 para a Venezuela, 4 para a Nicarágua e 3 para o Equador. A propósito, desde novembro, com a saída do titular John Danilovich, os Estados Unidos estão sem embaixador em Brasília. A sua função é exercida por um encarregado de negócios, o ministro-conselheiro Phillip Chicola, de origem cubana.