Título: Os sem-remédio recorrem à Justiça
Autor: Ricardo Westin
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/02/2006, Vida&, p. A22

Em 2005, Estados pagaram pelo menos R$ 285 milhões extras por drogas não disponíveis em farmácias públicas

Com a receita na mão, o doente procura o sistema público de saúde. Ouve um "não": o remédio indicado - normalmente muito caro - está em falta, não faz parte da lista de distribuição do governo ou ainda não existe no Brasil. Decide, então, recorrer à Justiça.

O inconformismo tem dado resultados. Só no ano passado, decisões judiciais forçaram os governos estaduais a desembolsar pelo menos R$ 285 milhões em remédios de alto custo - o equivalente a 30% dos gastos com os medicamentos do Programa Nacional de Aids em 2005. A cifra é resultado de um levantamento feito pelo Estado em todo o País - 17 dos 27 Estados responderam.

A prática está se tornando cada vez mais freqüente. Entre 2004 e 2005, o número de mandados judiciais em Goiás subiu de 72 para 216. No Paraná, os gastos extras com remédios saltaram de R$ 3 milhões para R$ 7 milhões.

Embora os Estados tenham programas de distribuição de remédios de alto custo, é comum que as farmácias públicas sofram de desabastecimento. A decisão da Justiça salva vidas. Foi o que aconteceu com o aposentado Irineu Trazzi, de 69 anos, que não encontrou um remédio imprescindível para o coração. Ele havia sofrido um enfarte, colocado uma ponte de safena e passado por uma angioplastia.

"Passei um nervoso, comecei a misturas as bolas", diz ele, lembrando a reação ao saber que teria de tirar R$ 230,00 todo mês da aposentadoria de R$ 500,00 para comprar a droga. Uma advogada conhecida da família o ajudou a entrar na Justiça. "Ao todo, recebo sete remédios. Se pagasse, não teria dinheiro para comer."

SEM DISTINÇÃO

A busca por remédios via Justiça independe de classe social. Mesmo quem tem melhores condições muitas vezes aciona o governo para reivindicar medicamentos de última geração porque os custos são elevadíssimos ou porque ainda não chegaram ao Brasil. Neste caso, se a Justiça determina, o Estado é obrigado a importar o produto.

A aposentada Célia Y., de 61 anos, soube que só conseguiria controlar o câncer de pulmão se combinasse a quimioterapia com um remédio de alta tecnologia, o Iressa, que ainda não pode ser comercializado no País. Importada, a droga sai por R$ 7 mil todo mês. "Os dois primeiros frascos, eu comprei. Torrei a minha economia de anos", conta. Diante da situação insustentável, foi à Justiça, sem se preocupar com o fato de o remédio ainda não ter a licença da Ministério da Saúde. "Ou você toma e arrisca viver, ou você não toma e morre."

Nos próximos meses, a indústria farmacêutica deve lançar no mercado brasileiro pelo menos 15 drogas só contra o câncer. Uma velocidade difícil de ser acompanhada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). "É complicado dizer ao paciente que o ideal é um tratamento ao qual ele pode não ter acesso", diz Olavo Feher, um dos diretores do Hospital do Câncer, de São Paulo.

As primeiras conquistas foram conseguidas no início do anos 90 pelos doentes de aids. Diante das sucessivas vitórias, o governo chegou à conclusão de que seria mais racional criar o Programa Nacional de Aids. Hoje, todos os doentes têm acesso aos anti-retrovirais. Como os remédios passaram a ser comprados em larga escala, o governo consegue preço mais baixos.

A aposentada Adriana Comino Kizar, de 69 anos, recebe do governo de São Paulo o Avastin,contra o câncer. Diante dos absurdos R$ 14 mil mensais necessários para importar a droga, ela recorreu à Justiça, mas sem convicção. Para sua surpresa, o remédio veio. E o tumor, que do cólon havia chegado ao pulmão e ao fígado, se estabilizou. "Passei o telefone da minha advogada para três pessoas da clínica onde faço quimioterapia. Para conseguir as coisas no Brasil, a gente tem de ser um pouquinho agressiva."