Título: Desordem venezuelana afeta petróleo
Autor: Norman Gall
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/02/2006, Internacional, p. A20

A desordem que está se espalhando pelo governo e pela sociedade da Venezuela está prejudicando a indústria petrolífera, o principal pilar de apoio do sistema político e maior esperança de recuperação de décadas de crescente pobreza.

O impacto do declínio da indústria venezuelana do petróleo tem sido mascarado pelos altos preços de hoje e por gestos políticos do presidente Hugo Chávez, que agora é o chefe absoluto da Petróleos de Venezuela (PDVSA), a empresa estatal de petróleo. A PDVSA já teve seis diretores-presidentes nos sete anos desde que Chávez foi eleito pela primeira vez, em 1998, depois do que a produção teve uma queda de 22%.

O evento decisivo para o declínio da PDVSA foi uma greve geral de dois meses (em dezembro de 2003 e janeiro de 2004), à qual aderiram operários e executivos numa tentativa desesperada de obrigar Chávez a renunciar ou, ao menos, a antecipar as eleições. Em vez disso, Chávez prevaleceu sobre os grevistas, apesar dos profundos danos à economia venezuelana, e a greve se transformou num locaute. Chávez demitiu 18 mil funcionários da PDVSA, incluindo a maior parte da equipe técnica de geólogos, geofísicos e engenheiros de reservatórios e de refinarias. Centros de treinamento e pesquisa da PDVSA foram desmantelados. "Chávez achou que poderia usar a greve para destruir a oposição", disse um veterano observador.

"Chávez é politicamente astuto, mas economicamente estúpido", disse um ex-companheiro de esquerda. "Ele dá ordens que não são cumpridas. Pensa que funcionários corruptos são fiéis a ele. Há muita inquietação por causa da corrupção entre os militares de nível médio. Foi um grande erro demitir todos os geólogos e engenheiros da PDVSA. Dessa forma, a empresa perdeu grande parte da sua base de conhecimentos e capital humano. Teria sido mais inteligente despedir os líderes da greve e manter os técnicos."

Chávez não apenas demitiu a massa crucial de técnicos da PDVSA, como também proibiu que outras empresas de petróleo que operam na Venezuela e suas prestadoras de serviço os contratassem, obrigando-os a deixar o país em busca de trabalho, o que gerou uma diáspora de petroleiros venezuelanos em lugares tão distantes como Canadá, Iraque e Ásia Central.

Há um século, antes do petróleo, a população da Venezuela era de apenas 2,4 milhões de habitantes, com 85% deles na área rural, trabalhando como agricultores de subsistência ou como trabalhadores contratados em latifúndios. A Venezuela perdeu quase 40% da sua população nas Guerras de Independência da América do Sul (1811-1824). Depois foi exaurida e desmoralizada por um século de levantes regionais, guerras civis e ditaduras. O então presidente do Estados Unidos, Theodore Roosevelt, chamou o então presidente da Venezuela, Cipriano Castro, de "um macaquinho indescritivelmente vil" quando navios de guerra britânicos e alemães estavam se preparando para bloquear os portos venezuelanos para receber dívidas não pagas. Tudo isso mudou em 14 de dezembro de 1922, quando a Shell perfurou o poço Los Barrosos nº 2, abaixo da bacia do Lago Maracaibo - uma erupção jorrando óleo violentamente a um ritmo de 100 mil barris ao dia.

Em 1929, a Venezuela se converteu na principal exportadora mundial de petróleo, continuando assim durante quatro décadas. Mas essa liderança teve seus altos e baixos. A administração Eisenhower estabeleceu cotas de importação de petróleo para proteger os produtores domésticos dos Estados Unidos do petróleo barato do Oriente Médio, criando um excesso de oferta mundial que obrigou a Venezuela a vender seu petróleo a US$ 1,40 o barril em 1959, época em que um volume parecido de água mineral estava custando US$ 5.

Essa superabundância de petróleo levou Juan Pablo Pérez Alfonzo, o sábio e austero ministro do Petróleo, a viajar para os países produtores do Oriente Médio e norte da África para organizar a Opep. Mas, 20 anos depois, Pérez Alfonzo denunciou o festival de desperdício e corrupção trazido pela bonança de petróleo da década de 1970, publicando um livro intitulado Estamos Afundando no Excremento do Diabo.

Em contraposição à vida rural de um século atrás, 90% dos 26 milhões de venezuelanos hoje moram em vilas e cidades, fortemente dependentes de uma indústria de petróleo em declínio que produz a maior parte de suas exportações e receitas do governo, embora empregue pouca gente. "Sem novos investimentos, a produção de petróleo cairá cerca de 20% ao ano", disse um economista sênior especializado em petróleo que já teve postos-chave no Ministério do Petróleo da Venezuela e na Opep em Viena. "Para manter a produção em seu atual nível, a Venezuela precisa investir US$ 2 bilhões de forma eficiente por ano. Para aumentar a produção, precisa investir US$ 4 bilhões. Mas a PDVSA está ficando aquém das metas de investimento, pois gasta US$ 4 bilhões por ano em projetos sociais. Recentemente, emitiu um plano de investimento de cinco anos que é apenas um sonho quase impossível."

Sob a pressão política de Chávez, a PDVSA está gastando mais para financiar programas sociais da "Revolução Bolivariana" do que em suas próprias necessidades de investimentos. Apesar disso, a PDVSA anunciou um novo e estratégico Plan Siembra Petrolera para aumentar a produção da Venezuela , hoje beirando os 2,5 milhões de barris ao dia, segundo estimativas independentes, para 5,8 milhões de barris ao dia, envolvendo investimentos totais de US$ 56 bilhões.

O plano tem sido criticado como sendo uma reapresentação do plano anterior da PDVSA, usando mais ou menos os mesmos números, estando os US$ 56 bilhões de investimentos planejados muito abaixo da quantia que foi necessária para um aumento muito menor na capacidade durante a década de 1990.

Além disso, 30% desse dinheiro deve vir de empresas de petróleo estrangeiras que operam na Venezuela. Essas empresas pararam de investir depois que, no ano passado, o governo cobrou bilhões de dólares em impostos atrasados e as obrigou a "migrar" para joint ventures com a PDVSA, em condições que ainda precisam ser anunciadas.

"A PDVSA politizou-se e agora lhe falta a capacidade administrativa e o know-how necessários para elaborar um plano empresarial digno de crédito", disse Diego González, um engenheiro da PDVSA aposentado que agora dirige o Instituto de Petróleo e Mineração (Ipemin). "Os contratos são concedidos sem critério, sem licitação. Como a maioria dos engenheiros de reservatórios foi despedida depois da greve, faltam à PDVSA técnicos para fazer reparos nos poços. Se os poços não são reparados periodicamente, os problemas mecânicos se multiplicam. Normalmente, um poço produz petróleo, gás, água e areia. Quando um poço produz excesso de água e de areia, precisa de consertos. Esta é uma tarefa dispendiosa e delicada, que exige uma equipe de 30 trabalhadores usando equipamentos de perfuração e manutenção ao preço de US$ 20 mil ao dia. Você precisa retirar as bombas, tubos de produção e a árvore de Natal (o conjunto de válvulas no topo do poço que impedem os escapes violentos). A limpeza do reservatório envolve disparar balas de aço dentro do poço para fragmentar a areia. Hoje 21 mil poços da PDVSA estão fechados por falta de reparos, um número que está aumentando continuamente, enquanto há 14 mil em produção."

Ignorando os problemas financeiros, de mão-de-obra e técnicos da indústria petrolífera da Venezuela, Chávez fez uma ousada proposta para a construção de um no valor de US$ 20 bilhões, conhecido como Gasur, que terá mais de 8 mil quilômetros de extensão, indo da Venezuela à Argentina, país que deve precisar importar gás dentro de dez anos. O Gasur atravessará toda a extensão do território brasileiro, com ramais para suprir cidades da Amazônia e do Nordeste brasileiro. Os governos brasileiro e argentino endossaram oficialmente a proposta de Chávez, um velho sonho dos engenheiros há muito considerado impraticável e para o qual ainda faltam os estudos de viabilidade.

Um consultor venezuelano observou que os engenheiros terão de lutar com uma estação chuvosa de oito meses em partes de Amazônia, com o percurso do gasoduto atravessando muitos rios, córregos e pântanos. Como a inundação sazonal pode atingir até 12 metros de altura, disse ele, será difícil manter abertas estradas de penetração para a manutenção do gasoduto. O custo de entrega do gás do Gasur na Argentina, incluindo transporte, será o equivalente a US$ 134 por barril, muito mais alto que o custo de outras alternativas, tais como importar gás da Bolívia ou construir navios especializados e instalações industriais para importar gás natural liquefeito da Venezuela para a Argentina.

A proposta de Chávez para o Gasur baseia-se na reserva comprovada de 151 trilhões de pés cúbicos (4,27 trilhões de metros cúbicos) de gás natural na Venezuela, a maior da América do Sul e a nona maior do mundo. No entanto, 90% dessas reservas estão associadas a depósitos de petróleo. Da atual produção de gás, 70% são injetados de novo nos poços em operações para manter a pressão nos reservatórios produtores. No passado, a Venezuela pouco explorou o gás não associado ao petróleo e atualmente há tanta escassez de gás utilizável que a produção de petróleo nos campos em torno do Lago Maracaibo está caindo rapidamente pela falta de gás para injetar nos reservatórios.

A Pequiven, a petroquímica afiliada à PDVSA, também anunciou seu próprio plano de expansão, no valor de US$ 26 bilhões, muito embora lhe falte suprimento de gás suficiente para sua produção atual. Se a atual exploração offshore por parte da Chevron e da Statoil da Noruega tiver sucesso, a Venezuela poderá ter de 1.700 a 2.500 pés cúbicos (48 a 70 metros cúbicos) de gás adicional por dia disponíveis, o que cobre por pouco a presente escassez do seu mercado interno. Estão em andamento conversações bilaterais para a construção de um gasoduto para importar gás da Colômbia.

Em 27 de dezembro de 2005, Chávez e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva lançaram a pedra fundamental de uma refinaria de 200 mil barris ao dia em Pernambuco, a ser construída e financiada conjuntamente pela PDVSA e a Petrobrás. A nova refinaria vai ser construída sob protestos de engenheiros da Petrobrás.

"Isto está sendo feito por motivos políticos", disse um veterano engenheiro de refino da Petrobrás. "Nossa refinaria na Bahia foi ampliada para atender o mercado do Nordeste. Expandir uma refinaria existente custa de US$ 5 mil a US$ 8 mil para cada barril de petróleo acrescentado à capacidade diária, enquanto uma nova refinaria custa de US$ 15 mil a US$ 18 mil por barril. A Venezuela produz muitos tipos de petróleo extrapesados. O Brasil não precisa importar óleos pesados porque já exporta 300 mil barris ao dia de óleo pesado abaixo do custo, provenientes da Bacia de Campos, para que possamos importar produtos e óleos leves. Cada 100 mil barris ao dia de petróleo venezuelano que importarmos para a refinaria de Pernambuco significa que teremos de exportar mais 100 mil barris ao dia com prejuízo. Felizmente, a decisão final sobre a construção ou não da refinaria de Pernambuco será tomada pelo próximo governo brasileiro."

A Venezuela tem várias perspectivas para aumentar sua produção de petróleo e gás. Sua fonte mais espetacular é estimada em 900 bilhões de barris de petróleo extrapesado, uma das maiores concentrações mundiais de hidrocarbonetos, encontrada debaixo de uma ampla faixa de savana ao norte do Rio Orinoco.

Antes conhecida como Faixa Betuminosa do Orinoco, mas desde então renomeada para Faixa Petrolífera do Orinoco, a região produziu 570 mil barris ao dia de óleos melhorados em 2004, graças às recentes inovações tecnológicas decorrentes de um investimento de US$ 13 bilhões feito na década de 1990 pela PDVSA e operadoras estrangeiras como a Conoco-Phillips, a Exxon-Mobil e Statoil. Essas operadoras conseguiram fazer petróleo sintético de qualidade média a leve, extraindo átomos de moléculas de betume e, em alguns casos, adicionando hidrogênio.

Nos tempos pré-colombianos, os aborígines usavam as infiltrações superficiais de alcatrão da região do Orinoco para revestir canoas e cabanas e para finalidades médicas. O primeiro poço a ser explorado na Faixa foi perfurado pela Exxon em 1936, mas foi logo abandonado porque o petróleo descoberto continha metais como o vanádio e o níquel, o que o tornava muito pesado para fluir naturalmente à superfície.

Como descrito recentemente pela VenEconomia Mensal: "A Faixa do Orinoco contém aproximadamente 1,2 trilhão de barris de gunk - que costumava ser chamado de betume, mas agora é chamado de petróleo extrapesado. Destes, acredita-se que somente 22% são recuperáveis usando a tecnologia de hoje. A expectativa é que novas tecnologias (diluentes, sistemas de extração baseada em fogo. etc.) levem a taxas de recuperação significativamente mais altas posteriormente. Mesmo assim, 22% de recuperação significa cerca de 264 bilhões de barris - o suficiente para suportar uma produção de 10 milhões de barris por dia durante 70 anos."

Em vez de investir pesadamente no Orinoco para garantir a produção nas próximas décadas, a PDVSA contratou algumas empresas estatais estrangeiras - a Petrobrás, a Pterosaur do Irã, a Onoc da Índia, a Gasport da Rússia e a China National Petroleum Corporation (CNPC) - para medir e aumentar as reservas comprovadas da Faixa. Nenhuma dessas empresas tem experiência anterior com óleos crus extrapesados. Ainda não se sabe, também, quais recursos financeiros e técnicos serão investidos na futura produção da Venezuela.

A atual produção mundial de petróleo mal é suficiente para acompanhar o ritmo de crescimento global. O Mar do Norte está exaurindo suas reservas recuperáveis. A produção mexicana talvez já tenha alcançado o seu auge. Conturbações políticas estão reduzindo as exportações da Nigéria e do Iraque. Outros países pertencentes à Opep bombeiam na sua capacidade máxima, enquanto a demanda sobe na China, Índia e Estados Unidos. As novas regiões produtoras na Rússia e na Ásia Central estão sujeitas a riscos políticos. "A extrema incerteza tem sido um tema constante nos últimos anos", disse recentemente a Agência Internacional de Energia.

Em meio a essa incerteza, o declínio e a desorganização da indústria petrolífera venezuelana podem ter um impacto tão importante para a economia mundial como a Venezuela teve há meio século, quando a produção global estava se expandido num ritmo acelerado e o país era o maior exportador mundial de petróleo. No apertado mercado de petróleo de hoje, com a produção e o consumo mundial pairando em torno de 85 milhões de barris por dia, a perda da Venezuela de 1 milhão de barris por dia vai gerar mais altas nos preços e aumentar a ansiedade.

Um dos livros favoritos de Hugo Chávez, que venera o libertador Simón Bolívar, é o O General em seu Labirinto, de Gabriel García Márquez. O livro conta a história da lenta e melancólica viagem de Bolívar pelo vale do Rio Magdalena em 1830 para morrer em Santa Marta, na Costa Atlântica da Colômbia. García Márquez cita as famosas últimas palavras do Libertador: "A América é ingovernável. Aqueles que serviram à revolução plantam no mar." Ultimamente, Hugo Chávez e muitos de seus seguidores estão tentando arduamente provar que Bolívar estava certo.

Cedo ou tarde, os venezuelanos terão de indagar-se por quanto tempo o país pode suportar os erros caros de Chávez, sua retórica polarizadora de provocações e sua negligência em relação aos problemas básicos da Venezuela. Chávez se encaixa nos arcaicos estereótipos latino-americanos, falando no jargão de um líder estudantil e agindo como um ditador militar com o tipo de populismo que vimos freqüentemente no passado. Seus longos discursos são repetitivos e fracos em conteúdo, faltando-lhe a densidade e a originalidade que seu mentor, Fidel Castro, mostrou nos primeiros anos da Revolução Cubana.

Chávez, porém, tem demonstrado um instinto de sobrevivência e um oportunismo que faltaram a mártires marxistas famosos como Che Guevara e Salvador Allende. A grande questão para um futuro próximo é: por quanto tempo a capacidade de manobra de Chávez sobreviverá à desordem a seu redor?