Título: O sonho de ser um homem-bomba
Autor: Expedito Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/02/2006, Internacional, p. A18

Nos lares palestinos, há centenas de jovens - gente simples, comum - que escolhem o martírio para chegar ao paraíso

Jihad Abu Dayade 41 anos, é um homem que não aparenta a idade que tem. Cabelos grisalhos, rosto marcado por rugas precoces, Abu Daya parece um ancião. A voz está cansada e o tronco curvado. Dono de uma loja de autopeças no centro de Gaza, ele não esconde de ninguém quem é. É o pai de Mohammad Jihad Abu Daya, que aos 18 anos ingressou no Hamas, com o apoio do pai, para virar homem... homem-bomba. O ataque acabou matando dois policiais palestinos que se encontravam no posto de controle de Erez, na Faixa de Gaza. O pai de Mohammad desconversa sobre o número de vítimas, já que o atentado acabou sendo uma espécie de fogo amigo. "Eu nunca procurei saber quantos morreram", confessou Abu Daya.

O mais chocante é que os outros quatro filhos de Abu Daya, três rapazes e uma menina, de idades que variam entre 10 e 23 anos, estão todos orgulhosos do irmão. Pelo menos um deles, Ahmed Jihad Abu Daya, de 20 anos, compartilha da mesma aspiração de Mohammad: explodir-se para alcançar o paraíso. E o pai já pôs o destino dos filhos nas mãos de Alá. "Nós, muçulmanos, sacrificamos a nós mesmos, nossas vidas, nossos filhos, nosso dinheiro, em favor de Alá", disse Jihad Abu Daya.

Para os cristãos ocidentais, que põem a vida como bem maior, o depoimento de Abu Daya é de embrulhar o estômago. Mas ele não está sozinho na Faixa de Gaza. Mais de 400 atentados suicidas foram patrocinados pelo Hamas contra civis e militares, matando centenas e ferindo milhares. Às famílias pobres o Hamas paga o enterro e presta todo tipo de assistência. Para os mais ricos, como Abu Daya, o Hamas se responsabiliza apenas pelo funeral com honras de mártir.

Nos lares palestinos há inúmeros pais como Abu Daya. E milhares de garotos como Mohammad. "Eu tenho orgulho dele porque defendeu sua terra e seu povo e foi para o paraíso. Ele é nosso herói", diz o irmão Ahmed, como quem sonha com o mesmo destino. Os homens-bomba formam um exército do qual ninguém se atreve a falar. "É um segredo até para líderes do Hamas", diz um jornalista palestino, pedindo para não ser identificado. O que impressiona é que esse exército é amparado e integrado por pessoas comuns. Gente amistosa no trato pessoal, mas que mistura fé e violência, numa combinação de intolerância e fanatismo religioso de que nem se dão conta.

Na loja de autopeças, o retrato de Mohammad está pendurado em um armário como se fosse a imagem de um santo. Ali, ele é cultuado pela família e reverenciado por quem chega à loja. Muito mais impressionante é o DVD com toda ação de Mohammad contra o posto de Erez. Está tudo gravado do começo ao fim e foi exibido à reportagem do Estado por Abu Daya e seu filho Ahmed.

No dia do ataque, 6 de março de 2004, Mohammad acordou sem demonstrar nada de anormal, segundo o pai. Ele já tinha percebido que o filho decidira se matar, levando junto os israelenses que encontrasse pela frente. Abu Daya conta que nos dias que antecederam o ataque o filho queria saber e conhecer todos os detalhes do paraíso.

Foi aí que ele percebeu que Mohammad havia entrado para o exército de homens-bomba do Hamas. Abu Daya conta que até tentou dissuadi-lo, sem êxito. Mohammad já sonhava com as virgens que encontraria do outro lado. "Não foi surpresa para mim, pois ele estava falando muito do paraíso." Mas e se ele tivesse pedido sua autorização?, questionou a reportagem. "Essa é uma resposta delicada", respondeu Abu Daya.

As imagens revelam que quando entrou no jipe do Hamas, que teria de dirigir até a fronteira, Mohammad estava contente como no dia do aniversário. Pior ainda. Pelas imagens, pode-se dizer que ele parecia um noivo no dia do casamento, mesmo sabendo que estava prestes a desposar a morte. Ele sorri para a câmera de forma suave, quase terna. Sua expressão não tem raiva nem medo. Na verdade, não tem sentido: alguém se preparar para matar e morrer com tamanha alegria.

Mostra os explosivos e ainda aponta para o botão detonador. Lembra, olhando para a câmera como se estivesse falando com amigos, que tem de apertá-lo para chegar ao paraíso. Ele parece realmente convencido de que o paraíso o espera.

Depois segue em direção de Erez, passa por uma chuva de tiros de metralhadora, e explode o carro em cima dos policiais palestinos da fronteira. O autor da filmagem acompanha tudo e, após a explosão, aplaude. É uma cena de guerra, infernal, desesperadora, com tiros, gritos e explosões. A cada cena, mostrada no computador da loja, pai e filho vão ficando mais orgulhosos de Mohammad. "Sinto falta dele, mas não sofro porque tenho certeza de que está no paraíso", afirmou Abu Daya.

Histórias como a de Mohammad não são apenas contadas entre os palestinos de boca em boca. Há até versão eletrônica. Uma série de DVDs piratas com as histórias dos homens-bomba virou uma febre em Gaza. Os DVDs podem ser encontrados facilmente em qualquer locadora. E as cópias se multiplicam para os jovens. Eles se espelham nos suicidas que, como se fossem heróis, tiram suas vidas e as de muitas outras pessoas, espalhando terror e medo. O que é mais assustador é que são pessoas comuns, como o dono da loja e seus cinco filhos.