Título: O caos no Haiti
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Fonte: O Estado de São Paulo, 05/02/2006, Notas e Informações, p. A3

Extensa reportagem publicada na edição de domingo passado do The New York Times, que o Estado transcreveu no dia seguinte, expõe, em detalhes, a responsabilidade do governo dos Estados Unidos pelo caos que, há pelo menos uma década e meia, transformou o Haiti - que nunca foi um país organizado e pacífico - numa terra de ninguém, sem lei e sem ordem. Ao contrário do que se poderia pensar, mostra a reportagem, não houve, naquele período, uma política norte-americana para a ilha do Caribe. O relacionamento com o Haiti tornou-se objetivo de uma disputa interna entre os partidos Democrático e Republicano e pelo menos uma organização não-governamental, que deveria, com sua assistência, ajudar na construção das praticamente inexistentes instituições locais, colaborou decisivamente para a consolidação do caos.

Durante anos, essa ONG, sustentada pelo governo e por empresas norte-americanas - o IRI, Instituto Republicano Internacional -, desenvolveu uma política que contrariava a ação da embaixada americana em Porto Príncipe. Enquanto a embaixada, seguindo instruções do Departamento de Estado, tentava apaziguar os ânimos e atenuar as hostilidades, por meio de negociações e diálogos entre as partes, o IRI recomendava a algumas facções que não fizessem concessões e patrocinava o treinamento de uma pequena força de 200 ex-policiais e militares na vizinha República Dominicana. Em fevereiro de 2004 essa força atacou Fort-Liberté. Dez dias depois, o presidente Jean-Bertrand Aristide partia para o exílio na África.

As tropas americanas enviadas para garantir um mínimo de ordem no país lá ficaram até meados do ano, quando foram substituídas pela Minutash (Força de Estabilização das Nações Unidas para o Haiti). Para desempenhar a missão que lhe foi atribuída, a Minutash precisaria contar com uma força policial de 25 mil a 30 mil homens. Dispõe, no entanto, de um contingente de cerca de 7,5 mil militares, nem sempre preparados para função policial. A ajuda de US$ 1,08 bilhão que foi prometida ao país, indispensável para o reforço de uma economia esfrangalhada e para a organização de instituições estatais minimamente operacionais, jamais chegou.

A partir de 1994, quando tropas norte-americanas ajudaram o presidente Aristide - que havia sido derrubado em 1991, oito meses após ser eleito no primeiro pleito livre e limpo realizado no Haiti - a voltar ao poder, o governo de Washington dedicou-se a treinar forças policiais honestas e eficientes, para substituir a corrupta e violenta polícia herdada da ditadura Duvalier. Após quatro anos de treinamento, os assessores americanos se retiraram e esse foi o sinal para que a nova polícia assimilasse, rapidamente, os velhos hábitos dos tontons macoutes. Há um ano e meio, a Minutash está treinando outra polícia, que tem mostrado que pode assaltar, seqüestrar e oprimir com a eficácia de suas predecessoras.

O embaixador americano Luigi Einaudi, que liderou um esforço internacional para encontrar uma solução política para a crise haitiana, hoje faz uma avaliação extremamente pessimista da situação. "O Haiti é uma tragédia, uma tragédia de facciosismo, ódio e hostilidade. Existem divisões entre os haitianos e também divisões entre os americanos, porque, nos EUA, o Haiti passou a simbolizar um ponto de atrito entre democratas e republicanos, o que não facilita uma política bipartidária e estável."

Após vários adiamentos, o governo provisório marcou eleições para o dia 7 de fevereiro. Nas condições atuais de violência política e criminalidade endêmica, a realização de eleições já seria uma enorme façanha; eleições livres e limpas seriam um verdadeiro milagre. Mas as eleições não terão o condão de pacificar o país, nem de fazer funcionar instituições que existem apenas pró forma. Quando muito, as facções mudarão de lugar, mas o caos continuará, sem perspectivas de boa solução.

É essa a situação que o governo brasileiro precisa examinar com cuidado. Washington isentou-se de responsabilidades sobre o caso haitiano, ao passar para o Brasil a liderança das tropas da Minutash. Mas a missão da ONU não pode cumprir seu mandato: nem pacifica o país nem fortalece suas instituições. O Brasil não pode ter um papel construtivo, em meio a esse caos.