Título: Singularidade brasileira
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/02/2006, Notas e Informações, p. A3

A voluntária capitulação do Brasil diante da Argentina, no acordo que dá ao vizinho país o direito de limitar as exportações brasileiras quando isso lhe convier, na contramão do que deveria ser o Mercosul, chama a atenção também pela sua singularidade. O Brasil, embora ainda seja um modesto figurante na cena do comércio mundial - a participação nacional no fluxo global de trocas é de mero 1% -, tornou-se um dos principais atores no debate da reforma do sistema, em curso na OMC e nas instâncias multilaterais afins ao tema.

No atual governo, o País consolidou o seu status de expoente na batalha pela liberalização comercial, mediante a redução - e sempre que possível a eliminação - dos subsídios protecionistas adotados pelas nações mais prósperas, como as da União Européia, além dos EUA, com óbvios e imensos danos para as economias emergentes. Pode-se, a propósito, criticar a hipocrisia dos governos que cantam o potencial da globalização para reduzir a pobreza no mundo e a desigualdade internacional, enquanto adotam políticas que apenas contribuem para aprofundá-las, ao praticamente confinar a nova ordem à livre circulação de capitais e à terceirização das atividades.

O que não se pode é deixar de reconhecer a lógica política do protecionismo - o que vem a calhar quando se pensa no regalo dado pelo Itamaraty aos argentinos. Nos regimes autoritários de cunho bonapartista, quando é inquestionável a hegemonia do Estado e de sua autoridade máxima sobre as forças sociais e econômicas, heterogêneas e não raro conflitantes, manda quem pode e obedece quem tem juízo. O núcleo dirigente se afirma sobre a diversidade de interesses particulares e, em nome do interesse nacional, define diretrizes de política econômica tidas como neutras diante de pretensões setoriais conflitantes. Por exemplo, se isso convier aos objetivos diplomáticos do regime, subsídios poderão ser removidos - e aos prejudicados restará queixar-se ao bispo.

Nas democracias, ao revés, o governo de turno tende a ser caudatário da competição entre as forças da sociedade organizada. Por essa ótica, um país será tanto mais democrático quanto mais igualitária a competição. No entanto, o grau maior ou menor de equalização das oportunidades entre os competidores não altera o essencial: as decisões da área pública quase sempre obedecem aos grupos de pressão mais aptos a fazer com que a democracia funcione a seu favor. Os EUA, em especial na era Bush, são uma evidência gritante seja do poderio descomunal dos lobbies que representam o que ali se chama "interesses especiais", cujos recursos são o oxigênio da sobrevida dos políticos, seja da submissão do Congresso e da Casa Branca às vontades do Big Business, seu grande eleitor.

Se o jogo correr dentro da lei, os governos em última análise estarão defendendo interesses econômicos nacionais, cuja legitimidade pode ser argüida pelo fato de serem coerentes com uma certa lógica da economia de mercado. Se essa defesa representa ou não um uso perverso do dinheiro do contribuinte - como cabe indagar diante dos fabulosos subsídios agrícolas europeus e americanos -, é outro problema. O ponto relevante, suscitado pelo papelão do Planalto, ao se curvar a uma descabida exigência argentina, é que, de um modo ou de outro, os governos democráticos são eleitos mais para obedecer do que para mandar. E existem para cuidar dos seus - para o bem de todos e felicidade geral da Nação. A singularidade brasileira, por isso, consiste em que, no episódio da concessão a Buenos Aires, apenas o mais recente de uma série, o governo cuidou de outros - cujos interesses se opõem aos nossos.

E o fez, como apontou sexta-feira neste jornal o colunista econômico Celso Ming, porque, na América do Sul, em ofuscante contraste com o que determina a sua atuação no resto do mundo, "o principal critério que define as ações do Itamaraty é geopolítico". Em nome disso, "o Brasil quer protagonismo, quer mostrar liderança e vai fazendo concessões atrás de concessões, pouco se importando com as rasteiras que leva em seu comércio exterior". O artigo confirma com uma fieira de exemplos o que os observadores sabem de há muito: o Itamaraty é um craque quando se guia pelos interesses comerciais brasileiros no grande mundo e uma lástima quando joga para fazer "exibicionismo político". Já é hora de importar para a América do Sul o desempenho brasileiro na OMC e em outros fóruns internacionais.