Título: O CDC se aplica aos bancos?
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Fonte: O Estado de São Paulo, 05/03/2006, Notas e Informações, p. A3

Por causa de mais um pedido de vista, o Supremo Tribunal Federal voltou a adiar a definição do julgamento do processo relativo à aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor (CDC) no setor bancário. Autora da ação, a Confederação Nacional do Sistema Financeiro alega que, como os bancos prestam serviços específicos numa área estratégica da economia, sua relação com os correntistas deveria ser fiscalizada pelo Banco Central e disciplinada por leis especiais.

A principal oposição dos bancos ao CDC decorre do fato de que esse texto legal inverte o ônus da prova. Na legislação comum, quem acusa tem de apresentar provas contra o acusado. Mas, quando a infração é tipificada pelo CDC, o acusado é que tem de apresentar provas e demonstrar sua inocência. Os bancos afirmam que essa medida os obriga a contratar mais advogados, o que aumenta seus custos e reduz seus lucros. Já o Instituto Brasileiro de Defesa e Política do Consumidor considera infundadas as pretensões dos bancos, alegando que o tratamento diferenciado dado a um segmento da iniciativa privada colide com o princípio constitucional de igualdade.

O caso se arrasta há tanto tempo no STF que, dos 3 votos proferidos até agora, 2 são de magistrados que já se aposentaram. Um é o ministro Néri da Silveira, que se retirou da corte em 2002, após ter votado contra a reivindicação dos bancos. O outro é o ministro Carlos Velloso, que se aposentou em janeiro e que se manifestou pela aplicação do CDC somente nas discussões que envolvam juros.

O terceiro voto foi dado na semana passada pelo presidente do STF, Nelson Jobim. Pela tradição da corte, ele deveria ser o último ministro a se manifestar. Mas, como pretende afastar-se do Supremo, para retornar à advocacia ou à política, Jobim preferiu antecipar sua decisão. E, ao contrário dos votos anteriores, o seu é o mais favorável à reivindicação dos bancos, pois exclui da tutela do CDC vários serviços bancários. "É um erro o entendimento de que o CDC tem aplicação universal", diz ele. Jobim distingue a figura do consumidor bancário da do poupador e afirma que os serviços especificamente financeiros são regulamentados pelo Banco Central, motivo pelo qual não podem ser objeto de tutela do CDC e dos Procons. Entre esses serviços, o ministro enumerou abertura de contas, depósitos, empréstimos, cobranças, operações de câmbio, cheques especiais e financiamentos. Já fornecimento de cheques, extratos, cartão magnético, aluguel de cofre e inclusão de correntistas no Serviço de Proteção ao Crédito, por não serem atividades financeiras, estariam sob tutela do CDC.

Evidentemente, o voto foi bem recebido no setor bancário. "Não se pode tratar empréstimo de dinheiro como uma compra de geladeira", disse o advogado dos bancos, Arnold Wald, para quem seus clientes prestam serviços distintos dos das empresas de varejo. "Se você não cria condições de segurança para os bancos, eles só vão emprestar dinheiro às empresas e não mais às pessoas", afirmou.

Nos meios forenses, porém, o voto de Jobim causou surpresa. Entre outros motivos, porque colide frontalmente com a decisão que o Superior Tribunal de Justiça já deu em milhares de ações em favor de correntistas, entendendo que as operações bancárias, sejam quais forem, configuram relações de consumo, sendo, portanto, passíveis de tutela pelo CDC. Além de contrariar a jurisprudência do STJ, o voto de Jobim acarreta um problema de ordem prática. "A distinção entre correntista e poupador é teórica. Como definir um usuário de cartão de crédito que refinancia seu débito ou um correntista de cheque especial que contrata novo limite de crédito?", questiona o advogado Jairo Saddi.

Diante da polêmica causada por esse voto e dos problemas práticos que poderá trazer para a Justiça, caso prevaleça, é preciso que os juízes do STF que ainda não se pronunciaram tenham redobrada cautela ao votar. Em nome da "segurança do sistema financeiro" os bancos já obtiveram prerrogativas que não têm paralelo entre os demais segmentos da iniciativa privada. É preciso, agora, que o STF decida este caso em função do interesse público, não se deixando levar pelos pretextos de um setor que, além de gozar de lucros fantásticos, parece almejar o capitalismo sem risco.