Título: Violência no Iraque ameaça região
Autor: Steven R. Weisman
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/03/2006, Internacional, p. A12

Os dois dias de tumulto no mês passado, depois do ataque a bomba contra um reverenciado santuário xiita, não apenas agravaram os ódios sectários no Iraque. Como uma experiência de quase morte, a carnificina parece ter despertado os líderes sunitas e xiitas para uma nova percepção de quanto custaria uma guerra civil e da necessidade de novos esforços para evitá-la. Mas o que acontecerá se esses esforços - e outros esforços frenéticos por parte dos americanos - se mostrarem incapazes de deter uma guerra total? E se for como disse Abraham Lincoln, referindo-se à maior provação dos Estados Unidos: "Todos a temiam, todos tentaram evitá-la ... e a guerra veio"?

O maior medo dos líderes do Oriente Médio é que uma guerra civil total não só dê origem a enclaves de sunitas, xiitas e curdos, em conflito dentro do Iraque, mas também espalhe a violência pela região de modo imprevisível..

Alguns especialistas já defenderam uma divisão negociada do Iraque em três setores principais para abrigar os agrupamentos étnicos e religiosos mais importantes. Mas uma ruptura violenta não poderia ser mantida estável facilmente.

Ela bem poderia incitar conflitos sectários em países vizinhos e, pior ainda, levar esses países a tomar posições no próprio Iraque. O Irã apoiaria os xiitas. Ele já se aliou às maiores milícias xiitas, das quais alguns membros aparentemente se envolveram nas retaliações contra os sunitas depois do ataque ao santuário.

E países sunitas como Arábia Saudita, Jordânia e Kuwait sentiriam uma necessidade de defender os sunitas ou talvez de criar Estados-tampão ao longo das fronteiras do Iraque. A Turquia também poderia sentir-se obrigada a entrar para proteger a minoria turcomana do Iraque contra um Estado curdo no norte.

Se o Iraque mergulhasse mais fundo nesse tipo de conflito, Bagdá e outras cidades poderiam virar centros de limpeza étnica, levando a violência vingativa de uma região a outra. Os xiitas do Líbano, do Kuwait e especialmente da Arábia Saudita, onde eles por acaso vivem na região leste, rica em petróleo, poderiam se revoltar facilmente. Tal conflito regional poderia durar anos e forçar o redesenho de fronteiras que, aliás, têm menos de cem anos.

"Uma guerra civil no Iraque seria uma espécie de terremoto afetando o Oriente Médio inteiro", disse Terje Roed-Larsen, enviado especial da ONU para o Líbano e anteriormente para o conflito israelense-palestino. "Ela aprofundaria divisões existentes e criaria outras numa parte do mundo já extremamente frágil e perigosa. Não estou prevendo que isso acontecerá, mas é um cenário plausível."

Uma primeira questão para os EUA, se um colapso geral da ordem estivesse para acontecer, seria o que fazer com seus 130 mil soldados no Iraque.

"Provavelmente teríamos de sair do caminho", disse Larry Diamond, que foi conselheiro da ocupação americana em Bagdá em 2004 e hoje é membro do Instituto Hoover, da Universidade de Stanford. "Não teríamos tropas suficientes para impedir a violência a essa altura. No mínimo, seríamos obrigados a recuar para determinadas bases militares e tentar manter o trabalho com a política."

As guerras civis modernas foram resolvidas pela negociação, mas só depois de serem agravadas pela intervenção de estrangeiros. O conflito interno na República Democrática do Congo, no fim dos anos 90, levou à intervenção de tropas de Ruanda, Uganda, Angola, Zimbábue e Namíbia. As guerras nos Bálcãs irromperam depois do colapso da Iugoslávia, no começo daquela década, primeiro na Bósnia e por fim em Kosovo. Os arranjos de partilha do poder já elaborados continuam precários, com o apoio de tropas da Otan.

Em eventos mais próximos do Iraque, mais de 15 anos de guerra civil no Líbano terminaram quando as tropas sírias assumiram o papel de reforçar uma configuração peculiar que distribui certos cargos importantes entre os grupos sectários do país. Até o Ocidente aceitou de início os sírios como um fator estabilizador - até o ano passado, quando eles se retiraram sob pressão européia e americana.

Mas o Iraque representa uma ameaça que ofusca esses problemas. O pivô de um possível conflito regional seria quase com certeza o Irã. Dirigentes xiitas próximos do Irã venceram a eleição iraquiana de dezembro e, embora os americanos e muitos líderes do Iraque defendam suas boas intenções nacionalistas, uma guerra civil quase certamente os levaria a buscar a ajuda de Teerã. Isso intensifica os temores dos árabes sunitas de um domínio iraniano na região.

"O que temos no Iraque não é apenas uma sociedade ruindo, como a Iugoslávia ou o Congo", disse Vali R. Nasr, professor de assuntos nacionais da Escola Naval de Pós-Graduação, em Monterey, Califórnia. "O que está em jogo não é só a estabilidade do Iraque, mas também o equilíbrio de poder na região."

Os historiadores que observassem essa perspectiva veriam uma repetição da divisão xiita-sunita que efetivamente atormentou o Oriente Médio a partir do século 8.º, prolongou-se nos impérios rivais Safávida e Otomano na Mesopotâmia moderna e chegou à guerra Irã-Iraque nos anos 80. Desta vez, no entanto, as supostas ambições atômicas do Irã poderiam acelerar uma corrida de armas nucleares, provavelmente liderada, entre as nações sunitas, pela Arábia Saudita.

Embora a secretária de Estado americana, Condoleezza Rice, tenha proclamado que o mundo isolou o Irã mais do que nunca por causa de suas ambições nucleares, o país na verdade reforça as relações com seus aliados locais à medida que os eventos avançam no Iraque. Nos últimos meses, o Irã aprofundou sua aliança com a Síria e o movimento xiita Hezbollah, no Líbano, e agora parece pronto para estabelecer uma amizade, baseada no financiamento, com uma Autoridade Palestina liderada pelo Hamas.

Alguns especialistas, no entanto, dizem que o Irã pode compreender os perigos de uma guerra. Até mesmo a condenação do atentado contra o santuário xiita por parte do presidente Mahmud Ahmadinejad, culpando sionistas e não sunitas, poderia ser vista como comedimento, afirmam esses especialistas - um esforço para responder à revolta dos xiitas sem agravar a tensão entre as comunidades islâmicas do Iraque.

Qualquer que seja o papel do Irã, muitos especialistas vêem outro perigo numa guerra civil em que as forças americanas fossem obrigadas a recuar nas rebeladas áreas sunitas do Iraque. Essas áreas quase certamente se tornariam abrigos para grupos terroristas que representariam uma ameaça de longo prazo a outros países árabes e ao Ocidente, especialmente EUA e Israel. "Pode ter certeza de que a Al-Qaeda se instalará nas áreas sunitas, como fez na guerra civil afegã", disse Kenneth M. Pollack, diretor de pesquisa do Centro Saban do Instituto Brookings.

Pollack avisa que uma guerra civil poderia ser especialmente dolorosa para os xiitas. Não há razão, afirma ele, para se supor que os xiitas não lutariam entre si. Todos os três grandes movimentos xiitas têm milícias. Às vezes, elas entram em choque. O Irã, disse Pollack, preferiria evitar uma fragmentação violenta desses grupos.

"A primeira coisa que veríamos numa guerra civil iraquiana seria uma guerra civil entre os xiitas", afirmou Pollack. "Existem mil milícias xiitas que poderiam lutar entre si, dividindo até mesmo o sul do Iraque."

Nem todos os especialistas em Iraque acreditam que uma guerra civil atrairia necessariamente outras nações. Os turcos, por exemplo, poderiam ser tentados a intervir, especialmente se um Estado curdo fosse criado no norte, incentivando os curdos do leste da Turquia a se rebelar. Mas a Turquia também não gostaria de afastar os membros da União Européia, na qual tenta ingressar desesperadamente, explicou Morton Abramowitz, ex-diplomata e hoje membro da Fundação Century. "Os turcos não iriam gostar do que estivesse acontecendo, mas são prudentes", disse ele.

Outra possível opção a uma grande intervenção externa poderia surgir na forma de um esforço regional organizado, apoiado pelas Nações Unidas ou pelos europeus, para mediar uma solução política. Ou os Estados árabes sunitas, por meio de uma organização como a Liga Árabe, poderiam tentar enviar uma força internacional para estabilizar o país.

Examinando todos os possíveis cenários de pesadelo numa entrevista na semana retrasada, o embaixador dos EUA no Iraque, Zalmay Khalilzad, declarou: "São questões sobre as quais algumas pessoas deveriam estar pensando, mas não acredito que caminhemos nessa direção. Os líderes do Iraque sabem que chegaram à beira do abismo com o ataque ao santuário. Como resultado, houve uma evolução de suas atitudes. Simplesmente acredito que os líderes do Iraque não querem uma guerra civil."

Lincoln, no entanto, afirmou em retrospectiva que não basta ter líderes que não querem a guerra. O problema é se existem coisas que eles querem mais que a guerra, dispondo-se a aceitar a guerra para obtê-las. No Iraque, aparentemente, isso também determinará se os líderes dirão um dia, com satisfação, que evitaram o abismo - ou com tristeza, como Lincoln, que "a guerra veio".

TRADUÇÃO DE ALEXANDRE MOSCHELLA