Título: Guantánamo: Gulag americano
Autor: Thomas Wilner
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/03/2006, Internacional, p. A18

O campo americano de prisioneiros na Baía de Guantánamo fica no canto sudeste de Cuba, um pedaço de terra que os Estados Unidos ocuparam em 1903. Há muito tempo, ele era irrigado por lagos do outro lado da ilha, mas o presidente cubano Fidel Castro cortou o fornecimento de água há anos. Assim, hoje Guantánamo produz a própria água numa usina de dessalinização de 30 anos. A água tem uma tonalidade distintamente amarelada. Todos os americanos bebem água importada, levada de avião. Até recentemente, os prisioneiros bebiam a água amarelada.

A prisão fica de frente para o mar, mas o oceano não pode ser visto pelos prisioneiros. Torres de vigia e de iluminação se enfileiram em todo o perímetro. Em minha última visita, fomos escoltados por guardas militares jovens e solenes cujas placas de identificação nas camisas estavam cobertas para que os prisioneiros não pudessem identificá-los.

Pouquíssimos forasteiros têm permissão de ver os prisioneiros. O governo orquestrou algumas visitas cuidadosamente controladas para a mídia e membros do Congresso, mas tem se recusado sistematicamente a permitir que esses visitantes, representantes das Nações Unidas, grupos de direitos humanos ou médicos e psiquiatras não-militares se encontrem ou conversem com prisioneiros. Até agora, os únicos visitantes que o fizeram são os representantes do Comitê Internacional da Cruz Vermelha - que são proibidos por suas próprias normas de revelar o que descobrem - e advogados dos prisioneiros.

Eu sou um desses advogados. Represento seis prisioneiros kuwaitianos, cada um já há quase quatro anos em Guantánamo. Precisei de dois anos e meio para ter acesso a meus clientes, mas agora já visitei o campo 11 vezes nos últimos 14 meses. O que testemunhei é um cruel e pavoroso inferno de concreto e arame farpado que se tornou um pesadelo diário para as quase 500 pessoas capturadas depois de 11 de setembro de 2001 que estão presas sem acusaçã nem julgamento há mais de quatro anos. Aquilo é um verdadeiro Gulag americano.

Em minha última viagem, há três semanas, depois de preencher um formulário e submeter nossas bagagens a revista, meus colegas e eu fomos levados através de dois portões altos de malha de aço para o interior do campo de prisioneiros.

Nós entrevistamos nossos clientes em Camp Echo, um dos vários campos onde os prisioneiros são interrogados. Entramos numa sala quadrada de aproximadamente 4 metros de lado dividida ao meio por uma parede de malha de aço grossa. Num lado ficava uma mesa onde o prisioneiro podia se sentar para nossas entrevistas com os pés agrilhoados a uma argola de aço cimentada no chão. No outro lado ficavam uma ducha e uma cela como as que os prisioneiros ficam normalmente confinados. Em suas celas, os prisioneiros dormem num catre metálico encostado na parede, que é flanqueada por uma privada e uma pia. Eles recebem um colchão de espuma fino e um cobertor de algodão cinzento.

Os arquivos do Pentágono sobre os seis prisioneiros kuwaitianos que representamos revela que nenhum foi capturado num campo de batalha nem acusado de se envolver em hostilidades contra os EUA. Os prisioneiros alegam que foram detidos por senhores da guerra paquistaneses e afegãos e entregues aos EUA por recompensas variando de U$ 5 mil a U$ 25 mil - afirmação confirmada pela mídia americana. Obtivemos cópias de folhetos de promessas distribuídos no Afeganistão e Paquistão por forças americanas prometendo recompensas - "o suficiente para alimentar sua família por toda a vida" - por qualquer "terrorista árabe" entregue.

Os arquivos incluem apenas as acusações mais inconsistentes e boatos que jamais se sustentariam num tribunal. O arquivo sobre um prisioneiro indicava que ele fora visto conversando com dois suspeitos membros da Al-Qaeda no mesmo dia - em locais separados por milhares de quilômetros. A evidência "primária" contra outro era de que ele foi capturado usando um determinado relógio Casio "que muitos terroristas usam". Curiosamente, o mesmo relógio estava sendo usado pelo capelão militar americano, um muçulmano, em Guantánamo.

Quando me reuni pela primeira vez com meus clientes eles não eram vistos nem ouvidos por suas famílias havia mais de três anos, e haviam sido interrogados centenas de vezes. Muitos desconfiaram de nós; eles me disseram que haviam sido interrogados por pessoas que alegavam ser seus advogados, mas na verdade não o eram. Então nós exibimos DVDs em que membros de suas famílias lhes diziam quem nós éramos e que eles podiam confiar em nós. Vários choraram ao ver as famílias pela primeira vez em anos. Um deles havia se tornado pai enquanto estava detido e nunca vira o filho antes. Outro notou que seu pai não estava no DVD, e tivemos que lhe contar que o pai havia morrido.

A maioria dos prisioneiros é mantida separada, embora alguns consigam se comunicar através da malha de aço ou de paredes de concreto que separam suas celas. Eles se exercitam fisicamente sozinhos, alguns somente à noite. Não viam a luz do sol havia meses - uma tática especialmente cruel num clima tropical. Um prisioneiro me contou, "Passei quase todos os momentos nos últimos três anos,e comi todas as refeições, aqui nesta pequena cela que é meu banheiro." Além do Alcorão, os prisioneiros não têm nada para ler. Como resultado de nossos protestos, alguns receberam livros.

Todo prisioneiro que entrevistei afirma que foi duramente espancado e submetido a tratamentos que só poderiam ser chamados de tortura, por americanos, desde o primeiro dia de cativeiro americano no Paquistão e no Afeganistão. Eles disseram que foram pendurados pelos pulsos e espancados, pendurados pelos tornozelos e espancados, despidos e obrigados a desfilar diante de guardas mulheres e receberam choques elétricos. Pelo menos três alegaram ter sido espancados de novo depois de sua chegada a Guantánamo. Um de meus clientes, Fayiz Al Kandari, hoje com 27 anos, diz que teve costelas quebradas durante um interrogatório no Paquistão. Apalpei o afundamento em suas costelas. "Me batam quanto quiserem, mas me dêem uma audiência", dizia aos interrogadores.

Outro prisioneiro, Fawzi Al Odah, de 25 anos, é um professor que deixou a Cidade do Kuwait em 2001 para trabalhar em escolas afegãs, e depois paquistanesas. Depois do 11 de Setembro, ele e quatro outros kuwaitianos foram convidados a jantar por um líder tribal paquistanês e depois vendidos por ele para o cativeiro, segundo seus relatos, posteriormente confirmados por Newsweek e ABC News.

Em 8 de agosto de 2005, Fawzi, em desespero, entrou em greve de fome para afirmar sua inocência e protestar por estar preso há quatro anos sem acusações. Ele disse que queria se defender de quaisquer acusações, ou morrer. Ele me contou que tinha ouvido que parlamentares americanos haviam voltado de visitas a Guantánamo dizendo que ali era um resort caribenho com excelente comida. "Se comer, eu perdôo essas mentiras", disse Fawzi.

No final de agosto, depois que Fawzi desmaiou em sua cela, guardas começara a forçá-lo a comer introduzindo-lhe tubos pelo nariz até o estômago. No início, os tubos eram inseridos para cada alimentação e depois removidos. Fawzi me contou que isso era muito doloroso. Quando ele tentou arrancar os tubos, foi amarrado numa maca com a cabeça segura por muitos guardas.

Em meados de setembro, a alimentação forçada foi tornada mais humana. Os tubos de alimentação eram deixados no lugar e a fórmula era bombeada para dentro. Quando eu vi Fawzi,um tubo ainda se projetava de seu nariz. Gotas de sangue pingavam quando ele falava. Ele as enxugava com um guardanapo.

Pedimos os registros médicos de Fawzi para monitorar seu peso e sua saúde. Negado. A única maneira de podermos saber saber como Fawzi estava era visitá-lo a cada mês, o que fizemos. Quando o visitamos em novembro, seu peso havia caído de 63,5 quilos para 44,5. Especialistas em alimentação enteral nos disseram que a queda contínua de peso e outros sinais indicavam que a alimentação estava sendo conduzida de maneira incompetente. Pedimos que Fawzi fosse transferido para um hospital. De novo, o governo recusou.

Quando vimos Fawzi em dezembro, seu peso havia se estabilizado em torno de 50 quilos. As fórmulas haviam sido mudadas e ele estava sendo alimentado à força por pessoal médico e não por guardas.

Quando me encontrei com Fawzi há três semanas, os tubos haviam sido retirados de seu nariz. Disse-lhe que estava agradecido por ele depois de cinco meses ter encerrado a greve de fome. Ele olhou para mim tristemente e disse, "Eles nos torturaram para nós pararmos." No começo, disse, eles o puniram tirando seus "objetos de conforto" um a um: seu cobertor, sua toalha, sua calça comprida, seus sapatos. Depois o colocaram em isolamento. Quando isso não conseguiu persuadi-lo a encerrar a greve de fome, ele disse, veio um oficial até ele em 9 de janeiro para anunciar que qualquer detido que se recusasse a comer seria levado para "a cadeira".

O oficial preveniu que os prisioneiros recalcitrantes seriam amarrados num dispositivo de aço que empurrava suas cabeças para trás e os tubos seriam forçados para dentro e torcidos para fora em cada alimentação. "Vamos quebrar essa greve de fome", disse o oficial.

Fawzi disse que ouviu o prisioneiro na porta ao lado gritando e o prevenindo para desistir da greve. Ele decidiu que não estava "em greve para ser torturado". Disse que os que continuaram na greve de fome não só foram amarrados à "cadeira" mas foram deixados ali durante horas. Ele acredita que guardas os alimentaram não só com nutrientes mas também com diuréticos e laxantes para obrigá-los a defecar e urinar em si mesmos na cadeira.

Depois de menos de duas semanas desse tratamento, a greve acabou. Dos mais de 80 grevistas no fim de dezembro, Fawzi disse que somente 3 ou 4 ainda resistiam. Como resultado da greve, porém, os prisioneiros estão recebendo agora uma ração magra de água engarrafada.

Fawzi disse que comer era o único aspecto da vida em Guantánamo que ele poderia controlar; obrigá-lo a encerrar a greve de fome o privou do único meio de que dispunha para protestar contra a injustiça de sua prisão. Agora, disse, ele se sentia "sem esperança." O governo continua negando que haja qualquer injustiça em Guantánamo. Mas eu sei a verdade.TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

*Thomas Wilner é sócio do escritório Shearman & Sterling, que vem representando prisioneiros kuwaitianos em Guantánamo desde o início de 2002.