Título: Índia já é tratada como potência
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/03/2006, Internacional, p. A19

As autoridades indianas nunca esconderam que viam o histórico acordo de cooperação nuclear que o primeiro-ministro Manmohan Singh e o presidente George W. Bush anunciaram na última quinta-feira - e o conseqüente reconhecimento formal da Índia como membro pleno do clube das potências atômicas - como uma etapa importante da caminhada do país asiático rumo a uma cadeira cativa e permanente em um Conselho de Segurança (CS) das Nações Unidas ampliado.

O Brasil, a Alemanha e o Japão são aliados da Índia na reforma do Conselho. Perguntado por que os EUA não apóiam a pretensão de Nova Délhi a um lugar próprio no CS, durante a entrevista coletiva que concedeu com Singh, Bush evitou responder diretamente, mas deixou a porta aberta. Ele disse que "tem a mente aberta e está ouvindo". No ano passado, Washington endossou publicamente pela primeira vez a idéia da ampliação do Conselho ao anunciar seu apoio à ascensão do Japão e a adição de um total de "dois, ou algo assim" novos membros aos cinco permanentes atuais: os próprios EUA, Rússia, China, França e Inglaterra.

Na entrevista, Bush reiterou a posição de Washington, segundo a qual a reforma do CS não deve ser tratada de forma isolada e precisa ser precedida por mudanças em outros órgãos da ONU, como a sua Comissão de Direitos Humanos. "O que não queremos é ter uma medida de reforma do CS que cause a paralisação das outras reformas", disse. "Apoiamos a reforma e estamos interessados em diferentes formas de reformar o CS das Nações Unidas."

Interessados em fornecer combustível, tecnologia e equipamentos para o programa de energia nuclear indiano, França, Inglaterra e Rússia aplaudiram o pacto EUA-Índia. O silêncio inicial da China sugere que Pequim não vê com entusiasmo a oficialização da ascensão de uma potência rival da Ásia, e poderá usá-la como mais um motivo para continuar a barrar a reforma do CS. Por razões históricas, relacionadas com a ocupação da Mandchúria pelo Japão antes da 2ª Guerra Mundial, os chineses vetariam qualquer reforma que privilegiasse Tóquio.

Os efeitos reais do acordo nuclear EUA-Índia para as pretensões de ascensão de Nova Délhi ao principal foro político internacional só serão conhecidos depois que o pacto for ratificado pelo Congresso americano. Esta não será uma tarefa fácil para um presidente desacreditado e em fim de mandato, como Bush, que está hoje com uma taxa de aprovação popular de 35%. Parlamentares republicanos e democratas mostram-se céticos sobre o acordo. Na comunidade acadêmica e entre especialistas em não-proliferação, a criação de um regime nuclear especial para a Índia, que está embutida no acordo anunciado por Bush e Singh, provocou reações francamente hostis. "Não significa nada dizer que 14 dos 22 reatores nucleares da Índia estarão agora sob salvaguardas", afirmou ao New York Times Robert Einhorn, do Centro de Estudos Estratégicos Internacionais, que foi alto funcionário da área de não-proliferação da administração Bill Clinton. "O significativo é o que os indianos poderão fazer com os reatores não cobertos pelas salvaguardas. Ou seja, poderão aumentar enormemente a produção de material fóssil para bombas nucleares."

George Perkovich, vice-presidente da Fundação Carnagie para a Paz Internacional, disse que o acordo "permitirá à Índia produzir quantas armas nucleares quiser" e, do lado americano, "foi negociado pelo Papai Noel, com o objetivo de fazer o máximo de concessões possível".