Título: Presas e agentes penitenciários farão faculdade dentro da prisão
Autor: Lisandra Paraguassú
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/03/2006, Vida&, p. A20

Uma turma diferente vai começar as aulas da faculdade de Serviço Social na próxima semana. As alunas fizeram vestibular, foram aprovadas e estão entusiasmadas com o curso - mas, para estudar, sairão das celas para as salas de aula. O curso criado pelo Centro Universitário Metodista - Instituto Porto Alegre (IPA) será o primeiro dentro de um presídio - no caso, o presídio feminino Madre Pelletier, o único do Rio Grande do Sul.

As aulas da primeira faculdade dentro de uma casa de detenção começam na próxima semana. Serão 60 alunos, sendo a metade formada por presas. A outra, por agentes penitenciários, homens e mulheres que trabalham no próprio Madre Pelletier. Para os dois grupos, o curso será de graça. Faz parte da cota de filantropia da instituição. "Alguns dos públicos preferenciais do IPA são mulheres e sistema prisional. Decidimos unir as duas coisas e propor a criação do curso", diz Sinara Fajardo, uma das coordenadoras do projeto.

O convênio do IPA com a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) do Rio Grande do Sul prevê que a instituição faça tudo. O IPA está reformando o que era antes uma espécie de auditório no presídio, onde serão criadas duas salas de aula, uma biblioteca e uma sala com computadores. No primeiro semestre serão quatro professores. Haverá um vestibular por ano.

A seleção foi feita dentro do presídio, com presas e agentes penitenciários, e levou em conta o mesmo que nos demais vestibulares da instituição: o conhecimento. Não entra na seleção o comportamento da presa ou por qual crime ela foi condenada. "Para nós isso não importa. Interessa o resultado do vestibular e se a aluna tem o ensino médio", explica Sinara.

Apesar de boa parte das presas não ter em mente a área de Serviço Social como primeira opção, o curso foi escolhido por consenso. No início do projeto, o IPA ofereceu a elas áreas que poderiam ser desenvolvidas no presídio sem grandes prejuízos - pelo fato de não poderem sair - e o curso foi o escolhido.

O resultado do vestibular levou brincadeiras tradicionais de calouros para o interior do presídio. "No dia em que saiu o resultado a diretora nos trouxe para o salão e deu o jornal para a gente achar nossos nomes. Foi a maior empolgação. Depois ela mesma pintou as que passaram", conta Nara Dias*, de 24 anos, uma das aprovadas.

Condenada a três anos e quatro meses de prisão por associação ao tráfico - foi morar com um namorado e terminou por ser acusada de envolvimento -, Nara fazia curso técnico de enfermagem ao ser presa. Na cadeia, conseguiu uma das poucas vagas na oficina de costura, onde faz uniformes para uma empresa. Mas não tinha mais nenhuma perspectiva de estudar. A penitenciária só oferecia o supletivo de ensino fundamental. "Fiquei feliz demais. É uma oportunidade que eu nunca pensei em ter aqui", comemora.

O sonho de Nara, assim como da maior parte das presas, era, na verdade, fazer o curso de Direito - algo comum nos presídios. Mas a idéia de ter qualquer profissão ao sair da cadeia a entusiasma. "Quero fazer até o fim e trabalhar na área. Quem sabe, depois, posso pagar uma faculdade de Direito", diz.

É o mesmo sonho de Júlia Barros*, de 23 anos, outra das novas alunas do curso. Júlia estava no segundo ano de Direito em Lajeado, cidade onde morava com a família, quando foi presa e condenada a três anos e seis meses de prisão. Afirma que era usuária de drogas, mas a quantidade com que foi pega acabou por condená-la por tráfico. "É um caminho que se abre para a gente aqui, para a gente poder ter um futuro", disse.

Júlia chegou a ficar quase um ano em liberdade, entre os quatro meses de prisão preventiva e a condenação definitiva. Vinda de uma cidade pequena, de 70 mil habitantes, já sentiu as dificuldades que deverá enfrentar ao sair da cadeia. "Tem um olhar diferente, não adianta. A gente fica rotulada", lamenta. O diploma, espera, pode diminuir o custo de ter passado um valioso tempo na prisão.

Outra aluna entusiasmada com o novo curso é a assistente penitenciária Marlusa Silveira Netto, 39 anos, que trabalha na tesouraria.

No ano passado Marlusa tinha verificado a possibilidade de cursar Serviço Social em uma faculdade privada de Porto Alegre, mas descobriu que não teria como pagar. "Esse curso veio muito a calhar. Era exatamente o que eu queria", diz.

Acostumada com o presídio, onde trabalha há 11 anos, a tesoureira diz que quer terminar o curso e continuar a trabalhar lá mesmo no Madre Pelletier. Afirma que, mesmo hoje, já é um pouco assistente social das presas. "Eu resolvo muita coisa para elas. Gosto de lidar com pessoas, em qualquer situação", afirma.

Do outro lado, as presas querem se formar, de preferência, longe do presídio. Tanto Júlia quanto Nara deverão terminar o curso já fora do Madre Pelletier. Nara poderá sair para o sistema semi-aberto ainda neste mês. Vai trabalhar de dia, freqüentar o curso à noite na penitenciária e dormir numa instituição próxima. Júlia ficará mais tempo, mas também deve estar fora do Madre Pelletier na hora da formatura. Mesmo quando saírem para a condicional, vão poder continuar seu curso.

"Elas serão alunas do IPA, com os mesmos direitos e deveres", explica Sinara. Quando saírem, poderão mudar para outro campus, trocar de curso e até mesmo pedir transferência para outra faculdade, mesmo que sem a bolsa. Uma oportunidade que ninguém dentro da penitenciária quer perder.

* OS NOMES FORAM TROCADOS A PEDIDO DA SUSEPE