Título: Superávit ou superfisco?
Autor: James Marins
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/02/2006, Economia & Negócios, p. B2

Muitos acreditam que o setor público tenha promovido em 2005 o maior aperto fiscal desde 1994. Nesse tema aparecem duas curiosas figuras sob o foco da mídia: o hipertécnico secretário da Receita Federal, anunciando novo recorde arrecadatório, e o intocável ministro da Fazenda, exibindo seu superávit fiscal. Ambos disputam as manchetes, mas ninguém parece apontar qual é o verdadeiro herói do saldo orçamentário: o superávit ou o superfisco?

O superávit fiscal deve ser fruto da política fiscal - no contexto celebrizado por John Maynard Keynes desde o término da 2ª Grande Guerra -, que significa a condução econômica por meio de um conjunto articulado de medidas em substituição ao monetarismo puro e simples. Entre essas medidas, naturalmente, está a eficácia arrecadatória, que nunca foi forte em nosso país.

Concretamente, no Brasil, desde a Inconfidência Mineira, jamais tivemos verdadeiros motivos para reclamar do Fisco, geralmente tolerante, simplesmente inepto e eventualmente venal. Hoje, ao contrário, o superfisco é uma realidade palpável e cada vez mais opera como uma máquina a serviço da política e assentada na descoberta - incrivelmente recente por aqui - de que o Estado arrecadador lega ao governante um poderoso instrumento eleitoral. Não se trata apenas de uma percepção federal, mas geral, presente em todas as esferas políticas de nossa Federação.

Mesmo o observador mais desatento consegue enxergar que está em via de extinção a leviandade arrecadatória de até dez anos atrás, em que prefeitos tinham medo de ofender a sensibilidade de seus eleitores ao lhes cobrar o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS), época em que governadores se jactavam de receber espelhinhos e colares coloridos de astutas multinacionais em troca de décadas de isenção tributária.

Foi-se também o tempo de endividamento público fácil e irresponsável, de a Casa da Moeda industriando dinheiro falso convertido em inflação, de bancos oficiais financiando governos, e pior, financiando políticos a fundo perdido. Foi-se o tempo, também, de auditores fiscais desprovidos de equipamentos, desatualizados e mal remunerados.

De fato, uma vez percebido o esgotamento da capacidade de endividamento público, a palavra de ordem de prefeitos, governadores e presidentes é apenas uma: arrecadar. Arrecadar para se reeleger...

Por isso, nos últimos dez anos, as máquinas fazendárias em quase todo o País cultivam a profissionalização de seus quadros e investem em poderosos sistemas informáticos. Plantas de valores informatizadas alimentam o IPTU, retenções na fonte vitaminam o ISS, notas fiscais eletrônicas tornam instantâneo o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), cruzamentos de dados bancários oriundos da Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras (CPMF) constrangem os devedores do Imposto de Renda e operações de caça a ricos sonegadores se destinam puramente a estimular - pelo argumento do medo - o combalido impulso contributivo dos contribuintes brasileiros.

Com isso, vale a pena lembrar: a arrecadação tributária subiu de 28% do produto interno bruto (PIB) em 1994 para perto de 37% do PIB em 2005, ao passo que o superávit de 1994 foi de 5,21% do PIB e o de 2005 foi de 4,84% do PIB.

Isso significa que, em relação ao PIB, a arrecadação tributária aumentou 32%, enquanto , proporcionalmente, o superávit decresceu 7,1%. Ora, diante desse gigantesco esforço de arrecadar, o que sobra autenticamente como mérito superavitário? Houve de fato maior aperto fiscal ou simplesmente aumento arrecadatório? Criamos superávit ou superfisco?

Concretamente, o jactante superávit é uma falácia midiática; o verdadeiro herói - ou bandido, para alguns - é o superfisco. Não há, em realidade, aperto fiscal, mas sim aperto tributário, e o contribuinte brasileiro deve começar a acostumar-se com essa realidade, que não é negativa em termos absolutos. Embora muitos gritem contra a carga fiscal, grandes arrecadações são necessárias para a construção do País.

O aumento da eficiência arrecadatória nos últimos dez anos pode ser vislumbrado como uma importante conquista do Estado brasileiro, enquanto, na outra ponta, a falta de racionalidade dos gastos, essa, infelizmente, não gera superávit, mas visível superdéficit de eficiência.