Título: Custos ocultos começam a surgir
Autor: Washington Novaes
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/02/2006, Espaço Aberto, p. A2

Surpreendentemente até, há poucos dias, ao receber representantes do Fórum Brasileiro de Organizações Não-Governamentais e Movimentos Sociais, na presença da ministra Dilma Rousseff, o presidente da República, respondendo a queixas sobre o comportamento de representantes dos Ministérios da Agricultura, Transportes e Minas e Energia, assim como do agronegócio, no Grupo Interministerial de Combate ao Desmatamento na Amazônia, afirmou já haver dito "a esse pessoal do agronegócio que, um dia desses, com esses problemas ambientais e sociais, vamos sofrer retaliações lá na Organização Mundial do Comércio". A ministra-chefe da Casa Civil chegou a sugerir que o Banco do Brasil vinculasse a concessão de crédito agrícola ao respeito dos beneficiários à legislação ambiental e social - o que pode ser interessante (Amazônia, 14/2).

Na verdade, a cobrança por aqueles custos - não especificamente na Organização Mundial do Comércio (OMC) - já está presente há algum tempo. Só está se intensificando. E não se limita ao setor agropecuário. Neste momento mesmo, os Estados Unidos, fazendo de conta que não subsidiam fortemente sua produção agrícola e de outros setores, querem que aquela organização limite os subsídios brasileiros à exportação de manufaturas (Estado, 16/2, B8). E, com freqüência, esses subsídios e redução de impostos envolvem custos sociais e ambientais.

Um alerta foi dado já há uma década pelo primeiro relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) sobre o desenvolvimento humano no Brasil. Ele afirmava que o País não tinha nenhum setor realmente competitivo no comércio exterior - ou lhe faltava densidade tecnológica ou não tinha escala suficiente - e, para suprir a falta de competitividade, o País recorria ao que o relatório chamava de "fatores espúrios", custos ambientais ou sociais (depleção do custo da mão-de-obra) não-remunerados pelos importadores. Mesmo assim, esses fatores poderiam ser, em determinado momento, anulados por outro país disposto a absorver custos sociais ou ambientais ainda maiores.

O alerta presidencial vem no momento em que às exigências e retaliações externas se somam também questões internas. Como, por exemplo, os governadores de Estados em guerra com a União, que se recusa a lhes devolver parte do que perderam com a isenção ou redução de cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) na exportação (Lei Kandir) - um custo social, já que esse dinheiro em princípio seria aplicado em obras e serviços que beneficiariam toda a sociedade. Seriam R$ 5,2 bilhões este ano que os Estados teriam a receber pela receita que perderam com a desoneração e que teriam de ser incluídos no orçamento federal. Não bastasse isso, esse problema faz surgir outro: as prefeituras em cada unidade da federação estão cobrando dos governos estaduais a receita que perdem com a desoneração (25% do ICMS) na exportação. E não apenas essa perda: também a que sofrem com os incentivos fiscais que os Estados concedem para "atrair empreendimentos" e que implicam isenção de parte ou de todo o ICMS (outra perda de recursos que atenderiam o conjunto da sociedade).

(Numa discussão sobre a Agenda 21 em Goiás, foi mencionado há pouco por economistas que o Estado, onde o sistema vigora há mais de 20 anos sem exigir contrapartidas sociais, tem concedido R$ 3,5 bilhões ao ano em incentivos fiscais a empresas - quando arrecada em torno de R$ 6 bilhões por ano e deve à União R$ 12 bilhões.)

Mas não é só por esse ângulo que os custos sociais e ambientais dos modelos vigentes preocupam e começam a demonstrar insustentabilidade. O próprio Banco Mundial afirmou (Estado, 15/2, B8) que a miséria na América Latina, inclusive no Brasil, impede maior dinamismo às economias. Um aumento de 10% na pobreza (como tem ocorrido em conseqüência da concentração da renda) leva - diz o banco - a uma redução de 1% no produto interno bruto (PIB).

Sucessivas matérias neste jornal nas últimas semanas têm mostrado dificuldades ou insustentabilidade do atual modelo, mesmo sem considerar esses custos - pelo ângulo financeiro mesmo. O preço da soja, por exemplo, retornando a um nível histórico muito baixo, já não cobre os custos da produção, dos insumos químicos e fertilizantes e do transporte, que continuam subindo. E a queda continuada na cotação do dólar agrava a questão. Os agricultores pedem renegociação de suas dívidas, o governo quer limitá-la aos pequenos, agravam-se os conflitos políticos. Começa-se a questionar um modelo em que os preços de compra e dos fatores de produção são ditados de fora, sem nenhuma consideração pelos fatores reais, internos.

E não é só na agricultura. Produtores de carnes também mostram que o preço da arroba do boi gordo é o menor em nove anos (Estado, 13/2, B4), insustentável financeiramente. Da mesma maneira, as questões climáticas, contribuindo poderosamente para as perdas em safras (R$ 21 bilhões em 2005) e que podem se repetir este ano em muitos lugares, especialmente no Sul, adicionam aspectos de insustentabilidade ambiental.

Enfim, são muitos os sinais de alerta que se vão colocando - sociais, ambientais e da própria relação dos importadores com os exportadores de produtos primários ou de pouco valor agregado - por causa do controle externo sobre a remuneração dos exportadores e sobre vários dos custos de produção. Em outras áreas do comércio exterior, pela dificuldade em manter subsídios e incentivos fiscais.

Ao que parece, a discussão, ainda muito tímida, terá de ampliar-se. Não é preciso esperar que a insustentabilidade se agrave e produza conseqüências indesejáveis - econômicas, sociais e políticas.