Título: Lei antipalmada
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Fonte: O Estado de São Paulo, 24/02/2006, Notas e Informações, p. A3

É uma utopia perversa a suposição de que o ordenamento jurídico possa normatizar, nos mínimos pormenores, o comportamento das pessoas numa sociedade. Como ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, senão em virtude de lei - e esse é um princípio consagrado nas democracias -, a idéia da previsibilidade legal absoluta, tendo em vista a melhor das intenções de aperfeiçoar o comportamento social, necessariamente resvala para o cerceamento completo, por parte do Estado, da liberdade de atuação pessoal, familiar ou grupal, de membros da sociedade.

É verdade que as leis contribuíram muito para a evolução do comportamento das famílias, desde as priscas eras em que os pais exerciam poder de vida e morte sobre os filhos. Há de se entender, no entanto, que, muito mais do que as leis impostas de "bom comportamento", foi a própria evolução cultural dos povos que os fez entender melhor o papel educativo de uma geração em relação a outra, assim como a complexidade do relacionamento familiar. E é nesse contexto, acoplado à noção de respeito aos direitos e à integridade da pessoa humana, que se deve inserir a necessidade do combate ao uso de violência contra crianças, sob o pretexto da correção educativa.

A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados aprovou, e já seguiu para deliberação do Senado, um projeto de lei, de autoria conjunta de cinco deputados petistas - Maria do Rosário (RS), Ângela Guadagnin (SP), Selma Schons (PR), Luiz Couto (PB) e Fátima Bezerra (RN) -, já apelidado "Projeto da Palmada", que prevê sanções para qualquer tipo de violência contra crianças, praticada por pais, responsáveis ou educadores, mesmo sob a alegação de que seja usada para educar. Diga-se, de antemão, que os castigos corporais já estão incluídos no crime de maus-tratos previsto no Código Penal, assim como nas sanções estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA (Lei 8.069 de 13 de julho de 1990).

O problema consiste na gradação, que altera a qualidade do ato. Por esse projeto de lei, fica proibido aos pais dar uma simples palmada nas bundinhas dos seus filhos e, caso desrespeitem essa proibição, ficarão sujeitos às penas previstas no artigo 129 do ECA, que podem incluir encaminhamento a programa de proteção à família, tratamento psicológico, cursos ou programas de orientação, obrigação de encaminhar a criança ou o adolescente a tratamento especializado e até perda da guarda, destituição da tutela e suspensão ou destituição do pátrio poder.

Concorde-se em que a punição física, mesmo leve, não signifique a melhor pedagogia. Admita-se, como não destituído de fundamento, o argumento dos autores do projeto, segundo o qual a tolerância que a sociedade brasileira tem com os castigos físicos impostos a meninos e meninas é um incentivo a abusos e o primeiro passo para agressões mais graves. Aceite-se a observação da deputada Maria do Rosário, no sentido de que "os avanços obtidos pela sociedade brasileira ainda não são suficientes para romper com a cultura que admite a violência contra crianças". Leve-se em conta até o fato de proibição semelhante já existir, desde 1979, em 14 países, a saber: Suécia, Alemanha, Áustria, Dinamarca, Noruega, Letônia, Israel, Chipre, Islândia, Itália, Canadá, Reino Unido, México e Nova Zelândia. De qualquer forma, a indagação que persiste é esta: com a moderação que esteja longe de ser capitulada como "maus-tratos" ou de real violência, será que um pai ou uma mãe não podem dar uma simples e leve palmada - ou chinelada - no bumbum de seu filho, quando este estiver insistentemente desobedecendo a suas ordens, inclusive em brincadeiras que lhes tragam riscos graves de acidentes? E até que ponto o Estado pode interferir para determinar o que seja ou não a boa educação dada pelos pais a seus filhos?

Houve quem criticasse os autores do "Projeto da Palmada", afirmando que eles, provavelmente, jamais tiveram que cuidar de filhos na idade em torno de 5 anos. Se não tiveram, bom seria se recordassem da própria infância, do eventual grau de prejuízo que teriam causado as palmadas que lhes foram dadas (ou omitidas) por seus próprios pais.