Título: EUA subestimaram rivalidade sectária
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Fonte: O Estado de São Paulo, 24/02/2006, Internacional, p. A14

O ataque a bomba contra a Mesquita Dourada, na cidade iraquiana de Samara, é de mau agouro para os EUA, o Iraque e o Oriente Médio inteiro.

Justamente quando parecia que os muçulmanos da região deixavam as diferenças de lado para se unir em protesto contra as charges dinamarquesas, o ataque mostrou que o sectarismo islâmico continua sendo o maior obstáculo à paz. Ele também sublinhou a ineficácia dos EUA na tentativa de equilibrar os interesses dos muçulmanos xiitas e sunitas no Iraque.

O santuário atacado é um dos locais mais sagrados para os xiitas; eles acreditam que seu messias desapareceu do templo, para retornar só no Dia do Juízo Final. Por isso, sua destruição é um ataque direto à fé xiita.

O atentado também simbolizou a profundidade da fúria dos sunitas contra os xiitas por eles terem chegado ao poder no país depois da invasão liderada pelos EUA. Contudo, no que talvez seja mais importante, o ataque deveria servir como um alerta aos EUA sobre o avanço do extremismo sunita no Oriente Médio.

A insurgência pós-guerra pode ter fornecido a arena para que militantes de todo o mundo árabe se reúnam na jihad (guerra santa) contra os EUA, mas o que está no coração da campanha mortífera é a secular guerra sunita contra o xiismo.

Uma guerra sectária total, é claro, tornaria impossível a criação de um Iraque viável. Mas Washington se recusou por tempo demais a reconhecer a importância fundamental do antagonismo xiita-sunita para a política iraquiana. Em vez disso, o governo Bush insistiu que a insurgência era obra principalmente de estrangeiros infiltrados e baathistas.

À medida que os ataques continuaram por meses e anos, Washington finalmente foi obrigado a encarar as realidades sectárias; no entanto, sua resposta foi exigir que os iraquianos fizessem as pazes e seguissem em frente.

Na terça-feira, o embaixador Zalmay Khalilzad ameaçou publicamente o partido de predomínio xiita que venceu as eleições parlamentares de janeiro, afirmando que, se não formar um governo de unidade nacional que inclua os sunitas, correrá o risco de perder a assistência financeira americana. Ele também insistiu em que os políticos ligados a milícias xiitas sejam banidos dos Ministérios do Interior e da Defesa.

Entre os xiitas, tais ameaças têm um ar agourento. Não só porque eles vêem suas milícias como a única força a protegê-los hoje de carros-bomba, mas também porque vêem a pressão aberta dos EUA por um governo de unidade nacional como um mero afago dirigido aos sunitas e, pior ainda, um prêmio pela insurgência.

Os xiitas também consideram a política americana indevidamente influenciada por governantes sunitas da Jordânia e da Arábia Saudita, que dirigem um agressivo lobby a Washington em favor de um papel mais importante para os sunitas na administração do Iraque.

Isto levou muitos xiitas a falar numa "segunda traição" por parte de Washington, uma seqüência do que aconteceu em 1991, quando eles se rebelaram contra Saddam Hussein e foram massacrados enquanto as forças americanas se recusavam a intervir.

Os EUA não podem mais dar como certo o apoio dos xiitas no Iraque. O atentado em Samara levou seu clérigo supremo, o grão-aiatolá Ali al-Sistani, a afirmar que, se o Estado não pode protegê-los, "os fiéis são capazes de fazê-lo com o poder de Deus".

O aiatolá, que há três anos pede comedimento e calma depois de cada carro-bomba e cada assassinato, parece ter chegado ao limite de sua paciência. O mesmo acontece com seus seguidores: sua conclamação ao protesto pacífico passou despercebida, enquanto xiitas atacavam mesquitas sunitas e matavam clérigos da seita inimiga.

Este desejo americano de aplacar os sunitas pode também ferir nossas ambições regionais. A Casa Branca tem preocupações razoáveis com as ligações de xiitas iraquianos com o Irã. A intenção declarada é de afastá-los da influência iraniana.

Isto não será fácil em nenhuma circunstância, mas será impossível se os xiitas do Iraque não confiarem no compromisso dos EUA de proteger seus interesses.

No rastro do ataque em Samara, a política americana de pressionar os xiitas para que assumam um compromisso com os sunitas só terá o efeito contrário. Os EUA podem não se sentir prontos para escolher os vencedores e perdedores no Iraque, mas será cada vez mais difícil e custoso deixar de fazê-lo.

*Vali Nasr é professor da Escola Naval de Pós-Graduação e autor do livro em fase de lançamento 'The Shia Revival: How Conflicts Within Islam Will Shape the Future' (O Renascimento Xiita: como os Conflitos Internos do Islã Moldarão o Futuro)