Título: Interpelação com pé e cabeça
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Fonte: O Estado de São Paulo, 04/02/2006, Notas e Informações, p. A3

A o contrário do que afirma o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Edson Vidigal, a interpelação feita ao presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) a respeito de suas pretensões eleitorais, por um grupo de 36 pessoas, entre as quais 1 ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 20 desembargadores e 1 ex-presidente da União Internacional de Magistrados, além de ter pé e cabeça é uma peça jurídica absolutamente irretocável, do ponto vista formal.

A interpelação começa citando os dois textos legais que o presidente da mais alta corte do País, num fato inédito na história da Justiça, é acusado de desrespeitar. O primeiro é a Constituição, que, no parágrafo único do artigo 95, proíbe os juízes de ter qualquer envolvimento político-partidário. O segundo texto é a Lei Orgânica da Magistratura, que impõe a mesma proibição no inciso II do artigo 26.

"O juiz deve pairar acima de toda e qualquer disputa pública de natureza político-partidária, suscetível de comprometer sua aura de imparcialidade no julgamento das causas que lhe sejam submetidas, mormente quando se trata de um membro da Suprema Corte, na qual desembocam as questões de maior repercussão política", afirmam os autores da interpelação. Em seguida, invocam as notícias veiculadas pela imprensa sobre os planos políticos do ministro Nelson Jobim, lembrando que elas jamais foram desmentidas. A partir daí, os autores da interpelação chamam a atenção para a "postura dúbia" do presidente do STF com relação a esse noticiário e para o perigo que ela representa para a imagem da instituição.

O risco de comprometimento da credibilidade do Supremo é o ponto central da interpelação de Jobim. Segundo seus signatários, para tentar viabilizar-se como candidato à vice-presidente da República, o ministro teria assumido uma postura de "subserviência ao Executivo". A grave acusação está embasada numa exaustiva enumeração dos pedidos de vista que Jobim formulou em Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins) de interesse do governo, mantendo-as engavetadas e, com isso, impedindo-as de serem votadas.

Ao todo, a interpelação lista 14 Adins engavetadas por pedidos de vista. Mais escandaloso ainda é o fato de que, ao pôr em prática essa tática de favorecimento do governo, o ministro desrespeitou os prazos de vista fixados pelo regimento do STF e pela Resolução 278/03. Em seu artigo 134, o regimento determina que, ao pedir vista de um processo, os ministros da corte devem devolvê-lo, "para prosseguimento da votação, até a segunda sessão ordinária subseqüente". Regulamentando esse artigo, a Resolução 278/03 fixa em até 30 dias não corridos o prazo para os ministros apresentarem o chamado "voto-vista".

Apesar disso, a interpelação lembra que a Adin 494 está com Jobim há quase nove anos. As Adins 682, 1491, 1764 e 1894 foram engavetadas em 1998. As Adins mais recentes por ele retidas datam de 2003. A interpelação também registra que, numa iniciativa reveladora do comportamento político do ministro, deixando de lado a isenção que deve nortear a conduta de um magistrado, ele renovou os pedidos de vista das 14 Adins em 28 de abril de 2004.

Além disso, ao assumir a presidência do STF, em junho de 2004, Jobim passou a interferir nos julgamentos, interrompendo colegas e os constrangendo com ironias. E ainda impos uma "pauta temática" ao plenário, colocando em discussão processos relativos a temas conexos. A justificativa para a medida foi a racionalização das votações. Mas vários ministros a consideraram arbitrária, sob alegação de que, ao romper os critérios até então vigentes, ela deu a Jobim o poder de decidir as matérias que poderiam ou não ser levadas a votação.

Mesmo que Jobim deixe a presidência do Supremo para participar das próximas eleições, sua renúncia não anulará o alcance da interpelação que sofreu. Ao apontar o conflito de interesses de um magistrado incapaz de discernir ambições políticas pessoais de suas obrigações constitucionais, em matéria de isenção, pondo sob suspeição os votos que deu nos principais casos em que atuou como presidente do Supremo, a interpelação mostra por que não se deve ter nos tribunais juízes oriundos da política, no momento em que o presidente Lula estuda a indicação de dois novos ministros para o Supremo. Bastaria isso para justificá-la.