Título: Dúvida inconsistente
Autor: João Guilherme Sabino Ometto
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/03/2006, Economia & Negócios, p. B2

Entre os dias 13 e 17 deste mês, em Curitiba, realiza-se nova rodada de negociações do Protocolo de Biossegurança de Cartagena. O Brasil, que se tornou signatário da convenção em 2003, tem agora de se adequar às normas de trânsito transfronteiriço de organismos vivos geneticamente modificados (OVMs), objeto desse acordo internacional.

A convenção, entre muitas normas, determina que esses organismos sejam identificados no transporte entre um país e outro. Tal procedimento, em especial no tocante a produtos destinados à alimentação humana e animal e ao processamento, propõe evitar danos à biodiversidade. De maneira mais didática, significa controlar os eventuais problemas suscitados por pesquisas biológicas e/ou por suas aplicações.

Até aí, não há o que discutir, pois todos concordam quanto à necessidade de garantir a sustentabilidade do crescimento econômico e de conservar o meio ambiente e os recursos naturais. O Brasil, no entanto, poderá ser bastante prejudicado, conforme a decisão final sobre a forma de apresentar a identificação das mercadorias exportadas - "pode conter OVMs" ou "contém OVMs". A diferença não é tão sutil como possa parecer e a questão não é meramente semântica.

A identificação no transporte internacional com a expressão "contém OVMs", como pretende o Protocolo de Cartagena, deverá acarretar custos muito elevados para o País, já que exigirá testes para determinar se, de fato, os organismos existem, quais são os tipos e quanto cada produto tem de alteração genética no meio em que está sendo transportado.

A grande pergunta que se faz, no entanto, é se esses testes são realmente necessários para evitar os danos dos OVMs ao meio ambiente. O Brasil, é importante lembrar, possui rigorosa Lei de Biossegurança, capaz de garantir a utilização adequada e segura dos organismos geneticamente modificados, desde o plantio até a comercialização, seja interna ou externa.

O mesmo caso se aplica aos produtos importados. A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) e o Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS) são órgãos competentes para fiscalizar os procedimentos. Apesar de todas essas condições favoráveis à utilização da expressão "pode conter", o governo brasileiro discutia internamente, até as vésperas do encontro de Curitiba, que posição defenderá. Em tese, as autoridades nacionais não deveriam ter dúvidas sobre a questão, pois a identificação "pode conter", que atende ao bom senso, à desburocratização e ao potencial de desenvolvimento crescente do agronegócio e suas exportações, não pressupõe nenhuma ameaça ao ambiente e à integridade da natureza.

E o principal e irrefutável argumento de que não há o que temer é que o Brasil é detentor da maior biodiversidade do planeta, com 20% do total mundial. São 50 mil espécies de plantas, 5 mil de vertebrados, 15 milhões de insetos e bilhões de microrganismos. Assim, não é sem razão que temos legislação rigorosa sobre o tema.

Os setores produtivos e a inteligência do País não seriam ingênuos, levianos ou irresponsáveis na defesa de medida que atentasse contra a nossa própria biodiversidade, certamente um fator de domínio econômico ao longo deste século.

Considerados estas premissas e o importante fato de o agronegócio ser o sustentáculo do superávit recorde de nossa balança comercial, é imprescindível que os interlocutores brasileiros no Protocolo de Cartagena deixem muito clara a inutilidade de um controle tão detalhado nas exportações de produtos que contenham organismos vivos geneticamente modificados.

Tal medida acarretaria aumento estimado em 10% nos custos das exportações dessas mercadorias, ou seja, estabeleceria mais uma barreira não-tarifária, prejudicial à competitividade internacional do agronegócio brasileiro.

Na última reunião do Pacto de Cartagena, realizada no ano passado em Montreal, no Canadá, o Brasil defendeu a manutenção do texto original com a expressão "pode conter OVMs". Este enunciado atende perfeitamente aos objetivos da biossegurança e não provoca ônus ao comércio exterior. Assim, é incompreensível existir a mínima dúvida sobre o tema entre as autoridades brasileiras.

Que não legislemos em causa própria nos fóruns internacionais, mas, ao menos, saibamos defender os interesses maiores de nossos 186 milhões de habitantes.

*João Guilherme Sabino Ometto é vice-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e coordenador do Comitê da Cadeia Produtiva do Agronegócio/Alimentação da entidade