Título: "Só feridas limpas podem cicatrizar"
Autor: Denise Chrispim Marin
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/03/2006, Internacional, p. A26

Seu país apresenta taxas de crescimento econômico com as quais a maioria dos europeus apenas sonha. A sra. é também uma socialista com a qual até o presidente George W. Bush simpatiza. Nessas circunstâncias governar deve ser muito divertido.

Sou a primeira mulher da América do Sul a ser eleita presidente democraticamente. Considero governar uma tarefa com uma grande carga de responsabilidade. Os chilenos esperam de mim que esteja mais atenta à justiça social e traga mais democracia para o país.

A sra. é mãe solteira, médica e agnóstica. Indicou dez mulheres para seu gabinete e a mesma quantidade de homens. Isso equivale a uma pequena revolução num país marcado por fortes tradições católicas e machistas. O Chile mudou tanto assim?

As mulheres são a cabeça de um terço dos lares chilenos. Experimentamos uma mudança cultural nos últimos 30 anos. Muitas mulheres chefiam organizações sociais, são líderes sindicais e desempenham papéis importantes nas escolas de seus filhos. O único lugar no qual as mulheres ainda estavam ausentes era nos níveis mais altos do governo. A decisão de meu predecessor, Ricardo Lagos, de colocar mulheres em posições de poder no Ministério das Relações Exteriores e no da Defesa foi revolucionária.

Em 11 de setembro de 1973, a sra. assistiu - do telhado da sua escola de eedicina - ao bombardeio ordenado por Augusto Pinochet ao Palácio de La Moneda, para onde a sra. está se mudando. O que esse capítulo da história significa para os chilenos hoje?

Isso faz parte da nossa história. Precisamos entender tudo que aconteceu, no interesse da verdade, da justiça e compensar todas as vítimas da violência política, independentemente de suas filiações partidárias. O total respeito pelos direitos humanos, e não apenas pelas liberdades civis, exercerá um papel muito importante na minha administração.

Os julgamentos que começaram recentemente de ex-líderes militares estão dividindo os chilenos em dois campos. Pinochet e sua família estão sendo investigados por sonegação de impostos.

Um país que passou por um trauma profundo como o Chile nunca será completamente curado. Sou médica e isso me permite usar uma analogia médica para explicar o problema: somente as feridas que são limpas podem cicatrizar, do contrário, se abrem de novo e podem infeccionar. A verdade deve ser trazida à luz. Naturalmente existe uma minoria que quer tudo varrido para debaixo do tapete. Num Estado constitucional, o governo deve tomar medidas para assegurar que o Judiciário possa funcionar sem obstruções. O fato de eu ter sido eleita mostra que o Chile tem uma sociedade madura. E é por isso que a maioria dos cidadãos insiste que ninguém deve colocar-se acima da lei e escapar da punição.

Seu pai, um general leal a Allende, foi preso, torturado e morreu em conseqüência disso. Como política, a sra. tem evitado falar em reconciliação com adversários do passado. Em vez disso, tem-se referido ao processo como um "reencontro". Por quê?

Reconciliação também significa que a vítima deve perdoar o agressor. Mas nem todo mundo é capaz de perdoar. Depende das experiências do indivíduo, da capacidade dessa pessoa de superá-las. Mas o governo pode estabelecer condições para que diferentes campos se encontrem em projetos conjuntos.

A sra. foi ministra da Defesa do Chile por quase três anos. Acredita que os líderes militares podem submeter-se aos princípios democráticos?

Sim. Todas as nossas instituições operam de forma democrática hoje. Já faz algum tempo que as Forças Armadas aceitaram o fato de que o presidente é o seu comandante-chefe e exerce este poder por meio do ministro da Defesa. Em nosso caso, ambos esses cargos serão ocupados por mulheres.

Alguns ainda alegam que há dois partidos no Chile: os militares e as grandes empresas. Se essas duas entidades estiverem funcionando plenamente, o país pode até se dar o luxo de ter um governo socialista. Há alguma verdade nisso?

Pinochet não tem mais nenhum papel na política. A carreira militar é uma profissão como qualquer outra. Isso foi algo que consegui assegurar como ministra da Defesa. Hoje, os militares já não reivindicam o poder. Como cidadãos, os soldados têm direito ao voto. Não descarto a possibilidade de que muitos tenham votado em mim. A comunidade empresarial também sabe que continuarei a incentivar os crescimento. Mas deixei claro que as decisões sobre desenvolvimento econômico terão de ser tomadas como parte de um acordo social, com governo, empregadores e trabalhadores.

O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, inventou o que chamou de "eixo do bem" no qual inclui o país dele, a Cuba de Fidel Castro e a Bolívia do ex-líder dos produtores de coca, Evo Morales. A sra. também vai ingressar nesse clube?

Não quero lançar uma outra guerra fria, nem penso que seja uma boa idéia dividir o mundo entre bem e mal. Quero trabalhar com todos para combater as verdadeiras ameaças à América Latina- a pobreza generalizada e o fato de que muitos povos indígenas em particular, assim como mulheres e crianças, não estão recebendo sua parcela justa de progresso.

A tendência é que vejamos uma contínua virada para a esquerda nas eleições na América Latina este ano. O que está por trás disso?

Simples. O descontentamento de muitos cidadãos com alguns modelos econômicos que afetaram sua vida no passado.

A nova América Latina tem um denominador comum?

A meta comum é possibilitar que nosso povo tenha uma vida melhor. Mas usamos estratégias diferentes para abordar o desafio de promover justiça social. Não existe uma receita para todos os latino-americanos. Há muitos problemas - como os energéticos e ambientais - que os países individualmente não conseguem resolver por contra própria. A União Européia poderá ser nosso modelo em muitos aspectos.

Chávez já está convocando o Chile a abandonar seus vitoriosos acordos bilaterais de livre comércio em favor de uma aliança latino-americana. A sra. estaria aberta a esse convite?

Vivemos num continente extremamente heterogêneo. Mas acredito que seja possível chegar a um acordo comercial básico na América Latina, um acordo com o qual todos possamos conviver.