Título: Em cartaz, a memória da saúde pública
Autor: Angélica Santa Cruz
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/02/2006, Vida&, p. A22

Acervo do tempo em que combate a doenças era caso de polícia começa a ser recuperado

A imagem ao lado mostra a comparação entre um "cérebro normal" e um "cérebro de idiota" - ambos identificados por plaquinhas escritas à mão. Usados nesse caso para explicar os perigos do alcoolismo, eles faziam parte de uma coleção de órgãos conservados em recipientes especiais e guardados nos cinco armários que ficavam na sala que se vê na outra cena. Era um laboratório. Para lá iam as massas cinzentas de alguns pacientes - como esse que aparece no fotograma seguinte, meio assustado, sendo examinado por duas enfermeiras. E as pesquisas eram levadas adiante no Hospital Psiquiátrico do Juquery, instituição concebida pelo psiquiatra Franco da Rocha - esse aí que está limpando os óculos com um paninho branco.

Filmados em 35 mm, os fotogramas fazem parte de um filme institucional para exibição nas cidades do Prata gravado em 1927, quando o Hospital do Juquery tinha 1.080 pacientes e era considerado um marco no tratamento de distúrbios psíquicos no País. Feita em preto e branco e tingida em sépia, a gravação integra um lote de 135 rolos de filmes enviado à Cinemateca Brasileira pela equipe de especialistas que organiza o novo acervo do Museu de Saúde Pública Emílio Ribas.

Até ser recuperado, o filme só pode ser repassado sem som. Mas - em meio às vistas externas do hospício, imagens do corpo clínico e longas tomadas das instalações físicas - é possível ver resquícios de uma época em que correntes da medicina tentavam associar características físicas às perturbações da mente. E portadores de distúrbios eram chamados de "idiotas".

Achados do gênero estão encaixotados em um galpão nos fundos do prédio do Museu Emílio Ribas, no Bom Retiro. O casarão passa por mudanças que devem transformá-lo no maior centro de referência da história das doenças e da saúde pública de São Paulo - uma boa-nova em um Estado onde acervos inteiros costumam mofar nos porões de instituições. A reestruturação deve ser concluída em seis meses e inclui reforma e investimentos orçados em R$ 4,3 milhões e incorporação dos documentos de outros lugares.

Quando reabrir, o lugar deverá contar com arquivos especiais para conservação e consulta de documentos, salas para exposições , auditório e laboratório de história oral - onde serão gravados os testemunhos de pessoas que conviveram com a maneira como o Estado e a população lidavam com males antes estigmatizados, como a hanseníase."Além de preservar a memória e centralizar material para consultas, o acervo resgata o pioneirismo de São Paulo em áreas como as dos sanitaristas", diz o secretário estadual de Saúde, Luiz Roberto Barradas.

O material arquivado no museu monta uma linha do tempo que vai do período em que combate às doenças era assunto de polícia até a revolução provocada pela chegada da microbiologia. E como era o ponto de vista oficial para todas esses etapas. "É um panorama que não é importante apenas para a preservação da memória. Olhar para o que já foi feito pode ser muito útil na criação de políticas públicas", acredita Yara Nogueira Monteiro, coordenadora do Núcleo de Investigação e Memória da Saúde do Instituto de Saúde - e uma das idealizadoras do projeto.

CIENTISTAS MALUCOS

O prédio do Museu Emílio Ribas já é uma aula de história. A partir de 1893, quando se acreditava que doenças infecciosas e epidêmicas eram transmitidas por miasmas - emanações que circulavam no ar -, o casarão abrigou o Desinfetório Central.

O lugar era equipado com grandes câmeras a vapor que fumigavam roupas e objetos de pessoas infectadas, principalmente imigrantes que acabavam de chegar para trabalhar na colheita do café. Dali saíam comitivas que faziam vacinações, desinfetavam domicílios inteiros e decidiam quem seria levado para os hospitais de isolamento. E ali começou a trabalhar uma geração de sanitaristas pioneiros, que lidava com o desconhecido por meio do empirismo e se metia em experimentos mirabolantes.

O médico paulista Emílio Ribas estava entre eles. E protagonizou a seguinte história: aos 39 anos, pai de família e já com uma barba branca que lhe dava um jeitão de d. Pedro II, trancou-se em uma pequena sala do antigo Hospital do Isolamento acompanhado por um de seus melhores amigos, Adolfo Lutz - um carioca filho de suíços moderninho que estudara em seis países - e outros quatro voluntários. Todos se deixaram picar por mosquitos. Três dias depois, Ribas acordou feliz da vida. Ele e Lutz estavam com febre, enjôos e calafrios. Um dos outros homens picados, o imigrante italiano Januario Fiori, estava à beira da morte.

O experimento - realizado em dezembro de 1901 e, para os padrões de hoje, bem doidão - provou que o surto de febre amarela que assolava São Paulo não era transmitido por pessoas infectadas , mas pelo mosquito Aedes aegypti, o mesmo da dengue. Também mostrou que a doença atacava com maior violência imigrantes ainda não aclimatados ao País.

DESLUMBRAMENTO

Além de dar vida a personagens hoje mais conhecidos pelo grande público por ter virado nome de ruas e instituições, o acervo ajuda a unir pontas da evolução no tratamento de doenças. O reforço nos arquivos foi enviado por instituições públicas e da sociedade civil.

Do Instituto de Saúde e do Instituto Alice Tibiriçá saiu o maior acervo sobre hanseníase do País - mais de 100 mil prontuários de pacientes que passaram pelo Hospital Padre Bento. Em alguns casos, a documentação está acompanhada pelo esfregaço, células de tecido conservadas em lâminas e que ainda podem ser reexaminadas por pesquisadores. Da Cruzada Pró-Infância saiu a primeira sistematização sobre aleitamento materno.

Distribuídos em armários de correr ou organizados em exposições, nos arquivos também poderão ser vistos a troca de correspondências entre personagens como Emílio Ribas e Oswaldo Cruz, livros de registros profissionais dos primeiros médicos, parteiras e enfermeiros da cidade, fotografias, coleções de jornais e panfletos de campanhas oficiais que mostram como o Estado lidou com doenças como tifo, cólera, dengue, raiva, malária, tuberculose, sífilis, gripe espanhola e, em período mais recente, aids.

A maioria desse material foi conservada por iniciativas individuais de funcionários de instituições. No conjunto, ajuda a entender as décadas em que a ciência avançou a ponto de trazer a cura fácil para moléstias que matavam ou excluíam multidões. Mas que também provocou um deslumbramento que ajudou a tirar de cena procedimentos antigos e eficazes - que agora passam a ser retomados - como o parto normal.