Título: Armas erradas para a guerra longa
Autor: Max Boot
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/02/2006, Internacional, p. A19

Boa parte do orçamento da defesa dos EUA ainda se destina a equipamentos que são herança da guerra fria

Nos últimos dias, o Departamento de Defesa divulgou dois importantes documentos - o Exame Quadrienal da Defesa (QDR) e o orçamento da defesa para o ano fiscal de 2007. Infelizmente, eles parecem diametralmente opostos.

O QDR, uma reformulação de grandes proporções da estratégia da defesa, pede mudanças nas Forças Armadas, que foram configuradas exclusivamente para combater adversários semelhantes. "No mundo pós-11 de setembro, a guerra irregular surgiu como a forma dominante de guerra, confrontando os Estados Unidos, seus aliados e parceiros", declara o documento. Para vencer o que o QDR chama de "guerra longa", a guerra global contra o terrorismo, pede o fortalecimento de determinadas áreas como "operações de combate ao terrorismo, contra-insurgência, estabilização e reconstrução".

A velha suposição de que as Forças Armadas devem estar prontas para combater dois adversários convencionais de uma só vez foi eliminada. Agora os Estados Unidos precisam estar prontos para apenas um inimigo convencional (digamos, Irã ou Coréia do Norte) "se já estiverem envolvidos numa campanha irregular de larga escala e longa duração". O documento reconhece que conceitos tais como "derrotar rapidamente" o inimigo podem não ser aplicáveis a esse tipo de campanha e isso vai exigir habilidades muito diferentes de nossos militares, que terão de "entender as culturas e sociedades estrangeiras e possuir a capacidade de treinar, coordenar e orientar forças de segurança estrangeiras".

Essa é um inversão bem-vinda após anos - ou talvez séculos - de pensamento convencional entre os escalões superiores das Forças Armadas. Mas o que o Pentágono está fazendo para pôr isso em prática?

O orçamento da Defesa anuncia algumas medidas positivas, tais como aumentos de 30% no número de operações especiais, operações psicológicas e unidades de assuntos civis. Infelizmente, seja qual for a retórica do QDR, uma parte muito grande do orçamento da Defesa para 2007 de US$ 439 bilhões ainda está reservada a plataformas de armas convencionais, heranças da guerra fria.

Por exemplo, o Pentágono continua a financiar três caças de curto alcance enormemente dispendiosos - o F/A-22 Raptor, o F/A-18E/F Super Hornet e o F-35 Joint Strike Fighter - muito embora já tenhamos o domínio total no ar. A parcela inteira do orçamento destinada a treinamento em idiomas e cultural - US$ 181 milhões - é menor que o preço de um F-35.

O que também está recebendo recursos é o submarino de ataque nuclear classe Virginia, com o QDR solicitando um eventual aumento de suas compras de um submarino por ano para dois. Esses submarinos, que valem US$ 2,4 bilhões, estão agora sendo anunciados como grandes ferramentas para coletar informações, disparar mísseis Tomahawk e inserir unidades de Forças Especiais em águas inimigas. Mas eles foram projetados para combater submarinos e navios de superfície soviéticos e essa ainda é a sua melhor serventia.

Ainda menos adequado para uma guerra irregular são outros dois navios cujo desenvolvimento irá engolir incontáveis bilhões: o CVN-21 e o DD(X), uma nova geração de porta-aviões e destróier.

Submarinos de ataque, porta-aviões e caças podem ser glamourosos, mas são quase totalmente inúteis para os desafios que os EUA enfrentam hoje em lugares como Iraque e Afeganistão. Lá, o combate está sendo feito por homens de infantaria do Exército e da Marinha - e em número insuficiente.

O Exército sofreu uma redução de 30% na década de 1990, muito embora o número de alocações tenha aumentado significativamente. Os oficiais estão ficando cada vez mais preocupados com o atual ritmo das operações. Se ele continuar, o Exército corre o risco de se transforme numa força "quebrada". Há uma necessidade urgente de ampliar seus quadros. Se não houver um número suficiente de americanos voluntários, deve-se pensar em recrutamento de estrangeiros - como uma contratação de gurkhas, guerreiros nepaleses famosos pela bravura).

Porém, o orçamento não prevê recursos para ampliar o efetivo, e o QDR na realidade prevê um ligeiro encolhimento do Exército nos próximos cincos anos.- dos atuais 419 mil soldados na ativa de hoje para 482.400 em 2011. Isso é bem menos que os 710 mil soldados em 1991.

Qual é a intenção? Por que o Pentágono ainda está jogando dinheiro em equipamentos de alta tecnologia de utilidade duvidosa enquanto ignora o gritante imperativo de mais botas no chão? Parte da resposta talvez seja política - armas de alto preço têm mais defensores na Colina do Capitólio do que os soldados rasos comuns. Mas também parece haver um grande aspecto de erro de cálculo aqui.

Apesar do toda a deferência do QDR para com a guerra irregular, o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, ainda parece achar que o Iraque e o Afeganistão são exceções e não a norma, que no futuro não precisaremos de tantos soldados em solo. Os Estados Unidos já pagaram um alto preço pelas decisões erradas de não enviar o número de soldados suficiente para garantir a estabilidade no Iraque ou para capturar Osama bin Laden em Tora Bora. Agora, parece que estamos fadados a cometer os mesmo erro nos campos de batalha do futuro, simplesmente porque não teremos o número de soldados suficiente.