Título: A redefinição dos alinhamentos
Autor: George Friedman
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/02/2006, Internacional, p. A16

A explosão de fúria está provocando uma mudança de posições no mundo islâmico e no Ocidente

Há algo de podre no reino da Dinamarca. Não poderíamos deixar de abrir assim - com as nossas desculpas a Shakespeare. Contudo, há algo de extremamente bizarro na idéia de que a Dinamarca - que fez da atitude de não ser ofensiva a ninguém uma religião nacional - possa se tornar o ponto focal da ira muçulmana. A visão de embaixadas dinamarquesas e norueguesas sendo queimadas em Damasco - e escandinavos em geral sendo recomendados a abandonarem países islâmicos - tem uma aura surreal: ninguém se enfurece com Dinamarca ou Noruega. Mas ameaças de morte estão sendo lançadas contra os dinamarqueses e noruegueses como se eles fossem amigos viscerais de Dick Cheney. A história tem seus momentos interessantes.

Ao mesmo tempo, esta não é uma questão para se tratar levianamente. A explosão no mundo muçulmano sobre a publicação de 12 charges num jornal menor dinamarquês - charges que apareceram pela primeira vez em setembro - redefiniu de maneira notável a matriz geopolítica da guerra EUA-jihadista. Ou, para ser mais preciso, pôs em movimento algo que parece estar redefinindo essa matriz. Não nos referimos aqui simplesmente a um choque de civilizações, embora esta seja uma parte inquestionável da questão. Queremos dizer que alinhamentos dentro do mundo islâmico e dentro do Ocidente parecem estar em movimento de algumas maneiras importantes.

Começando pelo óbvio: o debate sobre as charges. O Islã proíbe a exibição de imagens do profeta Maomé. Proíbe também ridicularizar o profeta. Assim, uma charge que ridicularize o profeta viola simultaneamente duas regras islâmicas fundamentais. Muçulmanos de todo o mundo ficaram profundamente ofendidos com essas charges.

É preciso assinalar enfaticamente que a rejeição muçulmana às charges não decorre de uma visão universalista de respeito às religiões. A crítica não decorre de uma visão secularista que trata todas as religiões com igual indiferença e requer "sensibilidade" não por teologias, mas para evitar ferir sentimentos alheios. A visão muçulmana é teológica: o profeta Maomé não deve ser ridicularizado nem retratado. Mas violar as sensibilidades de outras religiões não é tabu. Portanto, é freqüente muçulmanos em ações, impressos e falas fazerem e dizerem coisas sobre outras religiões - cristianismo, judaísmo, budismo - que os seguidores dessas religiões considerariam difamatórias. O Taleban, por exemplo, não se preocupou com as posições de outras religiões quando destruiu os famosos Budas em Bamiyan. A demanda muçulmana é honesta e autêntica: é de respeito pelo Islã, não um respeito secular geral por todas as crenças como se elas fossem iguais.

A resposta do Ocidente, e da Europa, em particular, tem sido enquadrar o assunto como uma questão de liberdade de expressão. Jornais europeus, desejando expressar solidariedade aos dinamarqueses, republicaram as charges, enfurecendo ainda mais os muçulmanos. O liberalismo europeu tem um perfil mais complexo que a ira islâmica sobre insultos.

Em muitos países, é ilegal incitar o ódio racial. É difícil imaginar que os defensores dessas charges ficariam calmamente sentados se uma charge racialmente difamatória fosse publicada. Imaginemos a recepção entre europeus liberais - ou em qualquer campus americano - se um professor publicasse um livro pretendendo demonstrar que as mulheres são intelectualmente inferiores aos homens. (A mera sugestão de semelhante coisa, pelo reitor de Harvard num pronunciamento recente, causou pedidos para que ele renunciasse.)

Em termos do diálogo sobre as charges, há muito para divertir até os mais impassíveis observadores. A visão de muçulmanos defendendo a necessidade de maior sensibilidade, e os defensores de leis contra o ódio racial pedindo uma liberdade de expressão absoluta, é realmente maravilhoso. Evidentemente, há uma diferença menor entre os dois lados: os muçulmanos estão ameaçando matar pessoas que os ofendam e estão queimando embaixadas - em suma, responsabilizando nações inteiras pelas ações de alguns de seus cidadãos. Os liberais europeus estão meramente fazendo discursos. Eles não estão ameaçando matar críticos do Estado secular moderno. Isso também distingue os muçulmanos de, por exemplo, os cristãos nos Estados Unidos que se sentiram afrontados pelas verbas do Fundo National para as Artes.

Estas não são distinções triviais. Mas o importante é o seguinte: a controvérsia sobre as charges envolve questões tão fundamentais para os dois lados que nenhum pode ceder. Os muçulmanos não podem aceitar sátiras visuais envolvendo o profeta. Os europeus tampouco podem aceitar que muçulmanos possam, usando a ameaça da força, ditar o que pode ser publicado. Valores cruciais estão em jogo, e isto se traduz em geopolítica.

Em um sentido, não há nada de novo ou interessante na inconsistência ou desonestidade intelectual. Tampouco há muita novidade em muçulmanos - ou ao menos, os radicais - ameaçarem matar pessoas que os ofendam. A novidade é a amplitude da reação muçulmana e o fato de que ela é dirigida obsessivamente não contra os EUA, mas contra Estados europeus.

Uma das principais características da guerra EUA-jihadista tem sido que cada lado tentou rachar o outro ao longo de uma "falha geológica" pré-existente. Para os EUA, tanto no Afeganistão como no Iraque, a manipulação de tensões sunitas-xiitas tem sido evidente. Para os jihadistas, e mais ainda para muçulmanos não jihadistas apanhados na guerra, a tensão entre os EUA e a Europa tem sido uma "falha geológica" crítica para manipular. É significativo, então, que o caso das charges ameace subjugar tanto a falha euro-americana como a falha sunita-xiita. Trata-se, paradoxalmente, de um caso que tanto unifica como divide.

É perigoso e difícil falar da "posição européia" - isto não existe realmente. Mas há uma posição franco-alemã que geralmente tem sido tomada como a posição européia. Mais precisamente, há a posição da elite franco-alemã a que The New York Times se refere sempre que menciona "Europa." É dessa Europa que estamos falando agora.

Na visão européia, então, os EUA reagiram de maneira exagerada aos ataques do 11 de Setembro. Afora a crítica à questão do Iraque, os europeus acreditam que os EUA não conseguiram avaliar o relativo isolamento da Al-Qaeda dentro do mundo islâmico e, ao reformularem suas relações com o mundo islâmico após o 11/9, causaram mais danos. Na verdade, prossegue essa visão, os EUA aumentaram o poder da Al-Qaeda e contribuíram desnecessariamente para a ameaça que ela representa. Implícito nas críticas européias - particularmente na dos franceses - a visão de que a insensibilidade de cowboy americano para com mundo muçulmano não só aumentou o perigo depois do 11/9, mas, de fato, precipitou o 11/9. Do apoio excessivo a Israel ao apoio ao Egito e à Jordânia, os EUA alienaram os muçulmanos. Em outras palavras, o 11/9 resultou de uma falta de sofisticação e de decisões políticas fracas dos EUA - e a resposta aos ataques do 11/9 foi simplesmente além da conta.

Agora eclodiu uma questão que não só não envolveu os EUA, como também não envolveu uma decisão de Estado. A decisão de publicar as charges ofensivas foi de um cidadão dinamarquês. A resposta islâmica foi de responsabilizar todo o Estado. Quando as charges foram republicadas, não foram as publicações que as exibiram que foram consideradas responsáveis, mas os Estados onde elas saíram. Houve ataques a embaixadas, homens armados em escritórios da União Européia em Gaza, ameaças de um novo 11/9 na Europa.

De um ponto de vista psicológico, isso traz para os europeus um argumento que a administração Bush vem usando desde o começo - que a ameaça de extremistas muçulmanos não é realmente uma resposta a nada, mas um perigo constantemente presente que pode ser acionado por qualquer coisa ou por nada. Estados europeus não podem controlar o que publicações privadas editam.

Isso significa que, queiram ou não, eles são reféns das percepções islâmicas. A ameaça, portanto, não está sob o seu controle. E assim, mesmo que ações ou políticas dos EUA tenham precipitado o 11/9, os europeus não estão menos imunes à ameaça que os americanos.

Lembre-se dos tumultos de Paris em novembro e da deterioração geral das relações entre muçulmanos na Europa e as populações dominantes. As imagens de manifestantes em Londres ameaçando a cidade com outro 11/9, toca em nervos extremamente sensíveis. Torna-se cada vez mais difícil para os europeus distinguir entre sua própria relação com o mundo islâmico e a relação americana com o mundo islâmico. Surge um senso de destino compartilhado, aproximando americanos e europeus. Numa época em que questões candentes como a das armas nucleares iranianas estão na mesa, isso aumenta a liberdade de ação de Washington.

Em outras palavras, a estratégia muçulmana de afastar EUA e Europa - e usar a Europa para conter os EUA - foi seriamente prejudicada pela reação muçulmana às charges.

XIITAS X SUNITAS

Mas o mesmo aconteceu com o racha entre sunitas e xiitas. As tensões entre essas duas comunidades sempre foram significativas. Diferenças teológicas à parte, tanto os atritos internacionais como os atritos internos foram severos. A guerra Irã-Iraque, a atual quase guerra civil no Iraque, as tensões entre sunitas e xiitas nos Estados do Golfo, tudo aponta para o óbvio: as duas comunidades, embora ambas muçulmanas, desconfiam uma da outra. O Irã xiita há muito vê a Arábia Saudita sunita como uma ferramenta corrupta dos EUA e sunitas radicais viam o Irã como um colaborador dos EUA nos casos do Iraque e do Afeganistão.

As charges são a única coisa em que as duas comunidades - não só no Oriente Médio, mas no mundo muçulmano em geral - podem concordar. Nenhum dos lados pode se dar ao luxo de desistir desse assunto e esperar manter alguma credibilidade no mundo islâmico. Cada comunidade - e cada Estado dominado por uma comunidade ou outra - precisa trabalhar para estabelecer (ou manter) suas credenciais islâmicas. Um caso em foco é a violência contra escritórios diplomáticos dinamarqueses e noruegueses na Síria (e depois, no Líbano e no Irã) - que seguramente tiveram envolvimento do governo sírio. A Síria é governada por alauítas, uma seita xiita. A Síria - alinhada ao Irã - abriga a maior comunidade sunita (existe outra no Líbano). As caricaturas proporcionaram ao que era essencialmente um regime secular a oportunidade de assumir a frente numa questão religiosa, permitindo os ataques às embaixadas. Isso ajudou a consolidar a posição do regime, ainda que temporariamente.

Na verdade, as comunidades sunita e xiita parecem estar competindo sobre qual está mais ofendida. O bloco sírio-iraniano xiita assumiu a frente em violência, mas a comunidade sunita também tem sido bastante vigorosa. As charges estão sendo transformadas num teste de autenticidade para muçulmanos. A ponto de muçulmanos dispostos a tolerar ou mesmo deixar de lado essa questão estarem sendo atacados como tolerantes com a difamação do profeta. As caricaturas estão forçando uma radicalização de partes da comunidade muçulmana incomodadas com as paixões do momento.

Os processos em curso no Ocidente e no mundo islâmico estão naturalmente interagindo. Os ataques a embaixadas, e ameaças contra vidas que se baseiam apenas na nacionalidade estão radicalizando a perspectiva do Ocidente sobre o Islã. A não disposição de governos ocidentais de punir ou limitar a distribuição das charges é tomada como um sinal dos sentimentos reais do Ocidente. A situação está pressionando continuamente cada comunidade, mesmo que elas estejam divididas.

Pode-se dizer que tudo isso é inevitável. Afinal, que outra resposta poderia haver, em cada lado? Mas é aí que a parte esquisita começa: as caricaturas foram realmente publicadas em setembro, e - embora tivessem provocado algumas queixas, em nível diplomático - não chegaram perto de provocar tumultos. Os acontecimentos evoluíram lentamente: as objeções de um clérigo muçulmano na Dinamarca depois da publicação inicial pelo jornal Jyllands-Posten acabou levando líderes da Comunidade de Fé Islâmica a viajar ao Egito, Síria e Líbano em dezembro, com o propósito de "provocar atitudes contra a Dinamarca e os dinamarqueses" em resposta às charges. Como ficou evidente agora, as atitudes foram certamente provocadas.

Há beneficiários. É importante notar aqui que o fato de alguém se beneficiar de alguma coisa não significa que ele foi responsável por ela. (Dizemos isso porque no passado, quando observamos os beneficiários de um acontecimento ou situação, luminares não tão brilhantes de alguns cantos deram de supor que nossa intenção era dizer que os beneficiários deliberadamente armaram o acontecimento.)

Houve dois beneficiários claros. Um são os EUA: o caso das charges está servindo para estreitar o abismo entre a visão do governo Bush sobre o mundo islâmico e a de muitos europeus. Entre os tumultos de Paris no ano passado, o assassinato por motivação religiosa de um cineasta holandês e a campanha de "culpem a Dinamarca", a paciência européia está se esgotando. O outro beneficiário é o Irã. No momento em que o Irã avança para um confronto com os EUA sobre armas nucleares, isso pode ajudar a unir o mundo muçulmano do seu lado: o Irã quer ser visto como o defensor do Islã, e os sunitas que levantaram dúvidas a respeito de seus flertes com os EUA sobre o Iraque agora estão vendo o Irã como o líder em ultraje contra a Europa.

As charges mudaram a dinâmica tanto dentro da Europa como do mundo islâmico, e entre eles. Isso não significa que o furor não arrefecerá no devido curso, mas levará muito tempo para os maus sentimentos se dissiparem. Isto criou uma séria barreira entre muçulmanos moderados e europeus que se opunham aos EUA. Eles seriam os mais propensos a colaborar, e a agitação presente dificulta essa colaboração. É difícil acreditar que algumas charges poderiam ser tão significativas, mas essas foram.