Título: Lula usa questão racial como trunfo
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/02/2006, Nacional, p. A8

Campanha pela reeleição inclui medidas para beneficiar as populações negra e parda, que são 48% do eleitorado

Apareceu um novo trunfo no baralho eleitoral de 2006 - a carta racial. De olho numa fatia que representa 48% do eleitorado, o governo Lula entra na campanha da reeleição com um pacote de medidas que podem lhe dar o voto da população negra.

"A eleição de 2006 será diferente da campanha de 2002", afirma o deputado Luiz Alberto (PT-BA), presidente da Frente Parlamentar pela Igualdade Racial. Há quatro anos Lula foi atrás da elite e dos mercados. "Em 2006 a campanha será popular, o que inclui a defesa mais explícita da população negra."

As ações do governo Lula envolvem programas de saúde, alimentação e até proteção de terreiros de candomblé. A população negra representa dois terços dos beneficiários do Bolsa Família (leia reportagem abaixo). O mais luxuoso troféu nessa direção foi lançado na semana passada, quando a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou projeto que define o regime de cotas para as universidades federais. Trata-se de proposta que radicaliza para pior as iniciativas anteriores.

Antes, pensava-se em reservar 20% das vagas para as cotas. O projeto aprovado eleva essa fatia para 50%, repartidas entre alunos de escolas públicas e negros. As cotas também passam a valer para cursos de pós-graduação e se tornam compulsórias em todos os cursos. Hoje, uma universidade com um número maior de estudantes negros num curso de Letras, por exemplo, pode compensar uma quantidade menor em Medicina. Agora, toda faculdade deve reservar metade das vagas para o regime de cotas.

Fusão de várias propostas, entre elas o projeto enviado pelo então ministro da Educação, Tarso Genro, o projeto contou com o voto envergonhado de parlamentares que discordam da idéia - alguns são petistas -, mas preferem ficar em silêncio. "Em ano eleitoral, ninguém se arrisca a ser acusado de votar contra uma proposta dessas", admite um deles. Esse receio se lamenta, pois impede que o Congresso amadureça uma discussão necessária.

As estatísticas mostram que os negros sobrevivem num cotidiano mais amargo do que os brancos, com salários menores, desemprego maior, menos estudo. A presença nas universidades fica em torno de 6%, contra 13%. É óbvio que não se pode ficar de braços cruzados diante dessa situação. E é óbvio, também, que para esses brasileiros, o regime de cotas equivale a um bilhete premiado de loteria - daí seu caráter eleitoralmente precioso. Caso o projeto seja aprovado, será uma grande bandeira eleitoral. Caso a discussão se prolongue para 2007, a campanha do PT pode pedir votos para Lula - para garantir as cotas.

Os defensores do sistema dizem que ele deve funcionar durante dez anos. Na realidade, todo regime que distribui vantagens exclusivas cria uma rede de interesses próprios que trabalha para eternizá-lo. Nos EUA, as cotas também seriam transitórias, mas duram mais de 30 anos. Vigoram em escolas, no serviço público, nas empresas privadas - e até empreiteiros de obras públicas se enrolam na origem étnica para levar vantagem numa concorrência. Imagine-se a dificuldade do Congresso brasileiro para arquivar um sistema que distribui benefícios materiais a 46% dos eleitores.

"Esse projeto é um esforço para reparar injustiça de quatro séculos", argumenta o deputado Luiz Alberto. O deputado José Eduardo Martins Cardozo (PT-SP), professor de Direito na PUC de São Paulo, reconhece que pela Constituição, "todos são iguais perante a lei". Ele defende as cotas porque "não se pode dar tratamento igual a situações desiguais". Para Douglas Martins, secretário-adjunto de Igualdade Racial, "o balanço de toda ação afirmativa mostra que o nível de exclusão diminuiu".

A questão é que para metade dos jovens com melhor classificação no vestibular a mudança representará exclusão e perda de direitos. Como os dois deputados explicariam as cotas para eles?

"Eu diria que este é o preço a pagar pelo modelo que nós construímos ao longo de séculos", responde Luiz Alberto. "Eu diria a esse estudante que o aluno negro que vai entrar no lugar dele estaria em outra situação se tivesse outra condição histórica", afirma Cardozo. Luiz Alberto diz que a classe média branca é responsável em parte pelo problema porque foi cúmplice "da crise da escola pública". "Em vez de defendê-la, preferiu acomodar-se e pagar mensalidade nas escolas privadas", acrescenta, sem esclarecer por que se pode falar em comodismo diante das salgadíssimas mensalidades da rede particular.

A idéia das cotas tem por trás a noção de que alguns brasileiros devem ser forçados a abrir mão de direitos legítimos, conquistados por mérito - ninguém entra em faculdade pública porque tem pai rico - em função de erros cometidos ao longo da história do País. Faz sentido? Numa argumentação brilhante, o juiz Anthony Scallia, da Suprema Corte americana, lembra que ninguém pode ser chamado a responder, individualmente, por enganos cometidos por gerações anteriores.

"O que me irrita é ouvir que o sistema vai beneficiar os pobres", diz o professor Carlos Fonseca Brandão, autor de As cotas na universidade pública brasileira: será este o caminho?. Brandão lembra que "as cotas não vão chegar aos miseráveis, que nem sonham com uma faculdade, mas vão ajudar a classe média que estava chegando lá por conta própria".

Os dados dos EUA mostram que o progresso social dos negros ocorreu numa fase histórica anterior às cotas, na arrancada econômica dos anos 40, 50 e 60. A maioria deixou a linha de pobreza. A ação afirmativa veio depois. Abriu oportunidades para quem estava nos degraus de cima da pirâmide, mas não produziu efeitos tão grandes na diminuição da miséria.