Título: A espiral da crise das charges
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Fonte: O Estado de São Paulo, 12/02/2006, Notas e Informações, p. A3

E nquanto a União Européia (UE) dá mostras de tibieza diante dos ataques criminosos principalmente contra as representações diplomáticas da Dinamarca em capitais muçulmanas, como Damasco, Beirute e Teerã, em represália às charges blásfemas publicadas em um jornal do país nórdico - e reproduzidas por outros órgãos da imprensa européia -, a secretária de Estado americana, Condoleezza Rice, acusou os governos do Irã e da Síria de incitar os atos de vandalismo, previsíveis porém injustificáveis a qualquer título. A acusação procede. Nesses países, a cólera antiocidental das massas ou é mobilizada ou abertamente tolerada pelos respectivos regimes autoritários - um, teocrático, o outro, secular. E são patentes os indícios de que agentes sírios inflamaram a multidão libanesa. (O governo de Beirute teve a decência de se desculpar com Copenhague.)

O estado de guerra latente entre os Estados Unidos e a Síria e o Irã - dois dos integrantes do "eixo do mal" de que falava o presidente George Bush enquanto preparava a invasão do Iraque - não tira, portanto, a autoridade das palavras de Condoleezza. Elas também chamam a atenção para a retração da União Européia em face de uma crise que a envolve, se alastra e cujo desfecho não está à vista. Além disso, na esteira da situação excepcional, se não inédita, de não serem americanas as bandeiras que ardem no mundo islâmico - porque Washington teve a atitude sensata de se solidarizar de imediato com os ofendidos -, Bush foi de uma felicidade rara ao abordar o problema. Ao lado do rei Abdullah, da Jordânia, disse o que precisava ser dito. Primeiro, que a violência como forma de expressar descontentamento com o que sai na imprensa livre é inadmissível. Segundo, que com a liberdade vem a responsabilidade de ter consideração pelos demais.

Outras não têm sido as manifestações de clérigos muçulmanos moderados, sobretudo na Europa, e de respeitados comentaristas portadores de irrepreensíveis credenciais liberais. É o caso do colunista Martin Wolf, do Financial Times. Em artigo transcrito dias atrás pelo jornal Valor, a par da candente defesa da liberdade de expressão, como princípio pétreo das sociedades democráticas, que não pode ser legalmente circunscrito, ele observa que "o comedimento no exercício da própria liberdade, nosso direito de nascença, pode ser muitas vezes o caminho mais prudente. O comedimento é uma medida da nossa maturidade". Enquanto as encolerizadas multidões davam o seu espetáculo de fúria desembestada, para júbilo dos pregadores da guerra santa ao Ocidente, no Ocidente formou-se como que um consenso sobre a impropriedade da publicação e, mais ainda, da republicação das charges.

Daí a dura reação do presidente francês Jacques Chirac à decisão do semanário satírico parisiense Charlie Hebdo de embarcar na nau dos insensatos, estampando as caricaturas, sem exceção da mais agressiva de todas, que mostra um profeta Maomé com um turbante sob a forma de bomba. Chirac, acertadamente, classifica a atitude do semanário como uma nova "provocação". O problema é levar os muçulmanos a entender que nada justifica a censura prévia ou a retirada de circulação de jornais ou revistas que os tenham agravado na Europa. Foi o que tentou conseguir o Conselho Francês de Culto Muçulmano, alheio ao fato de que qualquer medida desse calibre violaria a lei francesa de imprensa - que data de 1881. É claro que a apologia da tolerância e do "respeito a todas as crenças", feita pelo mesmo Chirac, embute uma forte preocupação de não dar pretextos para o círculo vicioso da radicalização islâmica e da islamofobia no país.

Idêntica é a inquietação dos governantes de nações européias cujas populações muçulmanas são expressiva minoria, como na Grã-Bretanha. A dificuldade não pode ser subestimada. Como escreveu na quinta-feira no Guardian de Londres o historiador Timothy Garton Ash, ela consiste em "achar o ponto de equilíbrio entre a livre expressão e o respeito mútuo nesse mundo ao mesmo tempo abençoado e amaldiçoado pela comunicação instantânea". A única certeza, acrescenta, é que não se pode combater fogo com fogo: "O perigo, neste momento crítico, é a formação de uma espiral perversa, com extremistas muçulmanos inflando as velas dos extremistas antimuçulmanos, cuja linguagem violenta, por sua vez, induz mais moderados muçulmanos a apoiar os jihadistas - e assim sucessivamente."