Título: Shakespeare atualizado
Autor: Ubiratan Brasil
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/03/2006, Caderno 2, p. D1

Com 'Trabalhos de Amor Perdidos', Jorge Furtado inicia coleção de adaptações modernas da obra do dramaturgo

Há mais que um simples toque de Shakespeare na obra do escritor e cineasta Jorge Furtado que julga a vã filosofia. Afinal, em seu filme de estréia, Houve Uma Vez Dois Verões, os três guris gaúchos nada mais são que uma versão moderna de Romeu, Lady Macbeth e Falstaff. Já no longa seguinte, O Homem Que Copiava, a referência é mais explícita: uma vendedora de roupas explica a um xerocador o sentido de um soneto de Shakespeare, que ele lera aos fiapos na copiadora. Nada surpreendente, portanto, que Furtado fosse convidado para inaugurar a nova coleção da editora Objetiva, Devorando Shakespeare, que desafia autores a se inspirar nas comédias favoritas do bardo, escritas há mais de 400 anos, para criar romances contemporâneos.

Ele escolheu Trabalhos de Amor Perdidos (246 págs., R$ 36,90), que chega hoje às livrarias e também à Bienal do Livro. "Quatro motivos que convenceram a escolher essa comédia", explica Furtado. "Primeiro, porque é a primeira peça publicada com a assinatura de Shakespeare, em 1595. Depois, por ser um dos quatro textos apontados como realmente de autoria dele. Terceiro, pelo texto, que envolve pessoas discutindo arte ao ar livre. E, finalmente, porque adoro a sonoridade do título original, Love's Labour Lost."

Furtado é um apaixonado pela obra de Shakespeare, a ponto de ter viajado a Londres e a Stratford-upon-Avon, cidade inglesa onde o poeta e dramaturgo nasceu num abril de 442 anos atrás, para realizar intensas pesquisas. "Claro que, com internet, seria mais prático e rápido, mas nada substitui o contato pessoal", disse ele, que leu todas as peças do bardo, acompanhado das análises feitas por outro shakespeariano apaixonado, o pesquisador americano Harold Bloom.

Tamanho cuidado não era dispensável - Furtado sabe que Shakespeare sem as palavras de Shakespeare não é Shakespeare. Afinal, o inglês supera os demais dramaturgos porque sua imaginação era mais rica que a de todos de sua época e cobria uma gama mais vasta de experiências. Suas peças são, ao mesmo tempo, as mais naturalistas e as mais poéticas já escritas. Assim, assumir a tarefa de recriá-las, mesmo que com um verniz contemporâneo, exige uma boa dose de ousadia de seu autor.

Em suas pesquisas, Furtado examinou também experiências de outros artistas, como as já célebres criações de Laurence Olivier e John Gielgud para o cinema (o Hamlet de Olivier ainda é insuperável), passando pela fase Kenneth Branagh (que levou à tela grande, além de Hamlet, Henrique V e Muito Barulho por Nada), até versões modernas como Ricardo III com Ian McKellen e o avançadíssimo Romeu + Julieta, de Baz Luhrmann. "Até Trabalhos de Amor Perdidos, um musical do Branagh com Alicia Silverstone no papel da princesa da França, em que os diálogos são interrompidos por canções de Cole Porter, eu assisti", diverte-se Furtado.

Visões multifacetadas que ajudaram o cineasta brasileiro a se preparar para sua tarefa de trazer o bardo para os trópicos. E o trabalho foi recompensador. No original de Shakespeare, Trabalhos de Amor Perdidos é ambientada no reino de Navarra, onde o rei e alguns nobres a seu serviço juram dedicar-se exclusivamente aos estudos, durante três anos. Mas, a chegada da rainha da França à região, acompanhada de suas damas lindas e gentis, arruína a promessa em dois atos. Os rapazes não apenas tratam de rapidamente esquecer o juramento como, no final da peça, são convocados pelo próprio rei a conquistar suas amadas: "Por São Cupido! Soldados, à batalha!"

Já o herói de Furtado chama-se Robin, ator gaúcho que, desempregado, consegue uma bolsa, financiada por uma fundação americana, para estudar a obra de Shakespeare durante um circuito de viagens por Londres, Dinamarca e Nova York. Ao mesmo tempo, desenvolve um projeto sobre o bardo com alunos vindos do mundo inteiro. Seu plano é escrever uma peça em que o personagem Yorick, o bobo na corte da Dinamarca, ressuscite e transforme Hamlet em uma comédia.

"Aos poucos, Robin se integra ao universo de outros colegas, como Duck e Gavil, com quem vive situações hilárias em Manhattan, e também conhece pessoas de lugares remotos, todos loucos por Shakespeare", conta Furtado, que trouxe um frescor bem brasileiro à narrativa, como fazer uma princesa árabe gostar de chimarrão e torcer pelo Grêmio. Ao leitor cuidadoso, aliás, um recado: prestar atenção aos detalhes talvez permita descobrir o final do enredo, uma surpresa que Furtado preparou com cuidado e de forma emocionante.

Em sua versão de Trabalhos de Amor Perdidos, o cineasta demonstra o caminho de suas pesquisas. Como a boa oralidade dos diálogos, uma das principais características do original de Shakespeare. "Por isso, sempre leio em voz alta o texto que escrevo a fim de descobrir frases que não soam bem", comenta Furtado, para quem as obras do bardo têm recebido tratamento mais adequado pelo cinema que propriamente pelo teatro. "Talvez sejam as técnicas cinematográficas que permitam que um sussurro seja realmente um sussurro e não um grito disfarçado como muitas vezes acontece no palco."

Na verdade, Furtado sabe que o sucesso de Shakespeare nas telas depende de uma cultura teatral pré-existente - afinal, tanto Kenneth Branagh como Laurence Olivier usaram, em suas versões cinematográficas, seu elenco regular de atores. "Afie seu Shakespeare e todos vão se curvar diante de você", aconselhava Cole Porter.

Por enquanto, Furtado contenta-se com a avaliação positiva de dois sobrinhos que, terminada a leitura de sua versão, começaram a devorar Hamlet, na tradução de Millôr Fernandes. "Já me sinto recompensado", disse ele, que será seguido na coleção por outros dois grandes nomes da literatura nacional: em maio, deverá ser lançado Sonhos de uma Noite de Verão, na versão de Adriana Falcão, e, em agosto, Noite de Reis, recriado por Luis Fernando Verissimo.