Título: Não é o BC, estúpido
Autor: Carlos Alberto Sardenberg
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/03/2006, Economia & Negócios, p. B2

Está certo que o Banco Central (BC) poderia ter reduzido a taxa básica de juros em um ponto porcentual, conforme o voto, derrotado, de três dos nove diretores do Comitê de Política Monetária (Copom), reunidos na quarta-feira. Daria um sinal mais interessante. Mas qual a diferença, para as condições de crescimento a médio prazo, de um juro real de 11,3% ao ano, como ficou, para outro de 11,1%?

Nada, não é mesmo?

A média de crescimento do Brasil nos últimos 11 anos - oito de FHC e três de Lula - tem sido de 2,5% ao ano, sempre com taxas de juros muito elevadas. Nesse período, passamos por várias diretorias do BC, todas igualmente acusadas de estúpidas, ignorantes e, mais suavemente, conservadoras em excesso.

Ora, a menos que Lula e FHC tenham revelado uma extraordinária capacidade de escolher para diretores do Banco Central os conservadores mais idiotas, é mais razoável supor que haja outras razões para os juros elevados.

Assim, a primeira crítica que se faz ao comportamento do BC - não derruba os juros porque é estúpido e/ou incompetente - é, ela mesma, estúpida e ignorante.

Em conseqüência, desconfie da tese segundo a qual qualquer um pode chegar lá e derrubar os juros de uma só tacada. É evidente que terá vida eterna um presidente que conseguir colocar os juros lá embaixo e gerar um período longo de crescimento forte e sem inflação. Todos sonham com isso. Por que Lula, que passou a vida inteira falando nisso, não o fez? Porque em boa hora desconfiou que, se fosse tão moleza assim, alguém já teria feito.

A segunda crítica, feita, por exemplo, pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), sugere que o BC está vendido aos banqueiros desde sempre. É certo que os bancos ganham dinheiro com juros altos, mas também ganham, e muito, em economias estáveis com juros baixos. Ou seja, o juro elevado não é necessariamente o interesse principal dos bancos, embora possam ser dos menos eficientes, entre os quais, aliás, se encontram os estatais.

Além disso, por que Lula, podendo derrubar os juros e formar um capital político valioso, se entregaria aos banqueiros? Por dinheiro? Bobagem, se fosse por isso, poderia apanhá-lo em outra parte. Dutos não faltam.

O terceiro tipo de crítica ao BC sustenta que se formou um ambiente ideológico neoliberal, conservador e favorável ao capital financeiro, que domina o pensamento e a prática de política econômica. E que esta seria amplamente favorável ao capital financeiro.

É verdade que há uma espécie de padronização global. Hoje, na maior parte dos países importantes, desenvolvidos e emergentes, se pratica uma política econômica baseada no seguinte tripé: inflação necessariamente abaixo de 5% nos emergentes e de 3% nos desenvolvidos, controle das contas públicas (responsabilidade fiscal, com níveis menores de endividamento do governo) e câmbio flutuante. Há variações aqui e ali. Conforme o país, uma perna do tripé é diferente, mas a linha geral é essa.

Também é mais ou menos sincronizado. Na semana passada, por exemplo, reuniram-se os bancos centrais de inúmeros países para fixar as taxas de juros, conforme o regime comum de metas de inflação.

Ocorre que há também, nas universidades e nos meios econômicos, no Brasil e lá fora, o pensamento econômico contrário a essas posições.

É a esquerda clássica - um pessoal que, no achado de Delfim Netto, não aprendeu nada nos últimos 50 anos e, pior, não esqueceu nada.

Mas os economistas dessas tendências estão fora dos governos - mesmo quando os governos são de esquerda. Aqui, são os economistas que haviam escrito os antigos documentos do PT e que esperavam governar com eles na vitória de Lula. Mas Lula foi buscar outros economistas, alinhados com o pensamento e as práticas dominantes no mundo. Em boa hora entendeu que inflação e juros não são de esquerda nem de direita.

O quarto tipo de crítica ao BC é mais consistente e civilizado. Parte do princípio de que a inflação tem de ser baixa e que o regime de metas é o correto. Mas sustenta que o Banco Central brasileiro falha na sintonia. Delfim Netto, por exemplo, escreve que estão errados, para menos, os cálculos do BC sobre o potencial de crescimento do País sem inflação.

Outros insistem em que já teria sido possível testar níveis de juros menores - de modo que hoje poderíamos estar com uma taxa básica de dois ou três pontos porcentuais abaixo dos atuais 15,5%. Faria diferença num período longo, mas as taxas reais estariam ainda só um pouco abaixo dos 10% ao ano, ante uma média dos emergentes que é de menos da metade disso.

Considerando-se tudo isso, os três primeiros tipos de crítica pensam assim, se é que se pode chamar isso de pensar: o Brasil não cresce porque os juros são elevados, campeões mundiais. Logo, o BC tem de derrubar os juros. Como o BC não o faz, torna-se o alvo dos ataques generalizados.

Mas é preciso perguntar antes por que os juros são elevados, por tanto tempo e tantos governos. Tem de haver uma causa - e a causa é forte, por resistir tanto. E está na cara.

O Brasil é campeão mundial de juros, mas também é campeão mundial de carga tributária entre os emergentes. Também é líder em gastos públicos com Previdência. Também ganha da maioria dos emergentes em dívida pública.

Temos um governo que gasta demais, gasta mal (quase tudo em custeio e o mínimo em investimentos), presta serviços ruins, acumula uma dívida de gastos passados irresponsáveis, como fazer Brasília com o dinheiro da Previdência, e toma da sociedade um montão de impostos e empréstimos. E ainda coloca obstáculos ao investimento privado.

Por isso os juros são altos, por isso o País não cresce.

De maneira que todo esse bate-boca em torno do BC é um equívoco total. O problema central não está nos diretores do BC, mas no Congresso, nos partidos, nos políticos - que não conseguem fazer uma reforma do setor público, incluindo receitas e despesas. O pecado original está na Constituição de 1988, que criou um regime fiscal (de contas públicas) absolutamente inviável. É uma Constituição tão ruim que, mesmo depois de centenas de emendas, continua ruim.

Serviço por serviço, o Banco Central faz o dele melhor