Título: Política externa de massas
Autor: Marcelo de Paiva Abreu
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/03/2006, Economia & Negócios, p. B2

A leitura do artigo Los tres años del gobierno del Presidente de Brasil Luiz Inácio Lula da Silva, que o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães fez publicar no periódico uruguaio La Onda Digital, nº 277, de 28/2 (http://www.uruguay2030.com/LaOnda/LaOnda/277/Recuadro2.htm), suscita profundas preocupações quanto aos rumos da política externa brasileira.

O que se lê no documento é a clara reiteração da aliança do Itamaraty com os "desenvolvimentistas sociais", que, no entender do embaixador, se opuseram aos monetaristas ortodoxos, "que defendem o controle a qualquer custo da inflação". A despeito desta "disputa política... paradoxalmente (sic), o êxito da política macroeconômica permitirá que o País ingresse numa nova etapa da História" (com H maiúsculo e tudo). O início do artigo é autocongratulatório, listando nada menos que 55 "realizações" de relevância muito desigual. Não há pejo em citar mesmo as que decorrem em boa parte das políticas dos monetaristas ortodoxos: por exemplo, que o salário mínimo dobrou em dólares desde 2003... Minha "realização" preferida: "Não foram privatizadas nem a Petrobrás, nem o Banco do Brasil, nem a Caixa Econômica Federal, nem nenhuma outra empresa pública no período, o que preservou a capacidade de o Estado impulsionar o processo de desenvolvimento."

Mas é a parte sobre política externa que tem mais interesse. Na lista de feitos da diplomacia brasileira são arrolados, entre outros: os entendimentos no G-4 quanto à reforma das Nações Unidas; o apoio da França e do Reino Unido à postulação brasileira quanto ao Conselho de Segurança da ONU; a criação do Fórum de Diálogo Índia, Brasil e África do Sul; o lançamento da iniciativa mundial contra a fome e a pobreza; a participação crucial na constituição do G-20.

Enquanto isso, no mundo real, o que se vê? Obstáculos que parecem intransponíveis da China e dos Estados Unidos, entre outros, à plataforma do G-4. Reorientação da posição japonesa em relação ao G-4. Dúvidas quanto à presença de tropas brasileiras no Haiti. Escassa base concreta na aproximação com a Índia e a África do Sul, refletida na modéstia dos acordos comerciais assinados. Sucesso extremamente limitado da iniciativa contra a fome. Só o futuro dirá se o G-20, a mais promissora das iniciativas diplomáticas brasileiras do triênio, contribuirá para a obtenção de avanços substanciais na liberalização agrícola. Até agora, os melhores resultados da ação brasileira recente na Organização Mundial do Comércio (OMC) são os painéis sobre açúcar e algodão, colheita de iniciativas do governo anterior e boa ilustração das virtudes de uma política externa com objetivos pouco voláteis.

Mas é em relação à América do Sul que o panglossianismo é mais evidente. Iniciativas conducentes à unidade econômica da América do Sul, sua integração física e atuação política coerente são obviamente desejáveis. Sem retaguarda sólida entre os vizinhos, o Brasil não tem condições de adotar "estratégia multipolar, de afirmação de soberania", buscar "maior independência, mais respeito (sic), melhor defesa dos (seus) interesses" e "reagir às iniciativas políticas das grandes potências" (capitalização sempre do embaixador) através de "alianças... com Estados da periferia". Aqui é brutal o conflito entre os desejos da diplomacia brasileira e a realidade. Não há menção à "redução de assimetrias" que esconda a deterioração do Mercosul. O Brasil segue calado, com a Argentina e o Uruguai imersos em grave conflito, desde o final de 2005, quando a Argentina decidiu fechar as pontes sobre o Rio Uruguai como protesto à construção de duas fábricas de celulose no Uruguai e seus alegados efeitos ambientais. Como escreveu Julio Sanguinetti, ex-presidente uruguaio, o líder natural da região "vive o seu carnaval distraidamente". Ainda não foi descoberta em Brasília fórmula alternativa à capitulação ou ao silêncio para enfrentar os acessos mercuriais do presidente Néstor Kirchner.

A manutenção de relações estreitas com a Venezuela de Hugo Chávez é mais grave: configura política exterior imprudente. Uma coisa é defender com intransigência a manutenção da ordem constitucional na Venezuela, outra é considerar que o chavismo possa ir além do rudimentar e do medíocre. A complacência do Itamaraty e do Palácio do Planalto com Chávez é um enigma, dados os contrastes entre as situações políticas nos dois países. Ou será que setores do governo antevêem maior convergência do Brasil com o chavismo no segundo mandato de Lula? Enquanto isto, nas barbas do Itamaraty, os Estados Unidos vão negociando acordos comerciais preferenciais com quase todos os vizinhos sul-americanos e estreitando as opções brasileiras.

Diplomacia presidencial e política de diversificação de alianças podem ter o seu papel, desde que subordinadas à concepção estratégica realista e baseadas em projeto nacional de boa qualidade. Com a recente recuperação da imagem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, aumenta a probabilidade de mais quatro anos de política externa estéril, sem objetivos concretos ou minimamente viáveis. A situação é ainda agravada pelo possível enfraquecimento, num segundo mandato, das restrições à política externa com foco nos interesses das "massas secularmente oprimidas e excluídas" que poderiam ser impostas por uma vertente "neoliberal" no governo.

Precisamos parar de brincar de BRIC. Reconhecer nossa lamentável posição na corrida do desenvolvimento. Identificar o que faz o Brasil crescer a uma taxa da ordem de um terço da taxa de crescimento da Índia e da China. Definir políticas que reduzam este hiato. Assegurar sua implementação sem devaneios. O artigo do embaixador sublinha quão longe estamos de tudo isso.