Título: Brasil tem "tempero progressista"
Autor: Denise Chrispim Marin
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/03/2006, Economia & Negocios, p. B3

José Luís Machinea, secretário-geral da CepalEntrevistaO Brasil mantém um "tempero progressista" em sua política econômica. Embora seja um pouco exagerado na definição da taxa de juros básica, o governo ainda conta com margens para calibrar as políticas monetária e cambial e deve usá-las no momento adequado para estimular o crescimento econômico. O diagnóstico vem de José Luís Machinea, secretário-geral da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), que estará em Belo Horizonte amanhã, para a reunião do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

"O Brasil adotou uma política fiscal sensata e razoável. Do ponto de vista monetário, talvez, tenha exagerado em algum momento", disse Machinea. "Mas há um tempero progressista na atuação do governo porque se pensa nos equilíbrios macroeconômicos."

Entre 1999 e 2001, Machinea enfrentou os dilemas reais da Argentina à frente do Ministério de Economia, em uma época de crise acentuada pela política de conversibilidade do peso. De linha mais ortodoxa, adaptou-se à orientação cepalina com habilidade desde o final de 2003, quando assumiu o posto de secretário-geral.

Observador da evolução econômica latino-americana, Machinea acredita que a possível mudança de governos na América Latina até meados de 2007, com orientação mais à esquerda, não trará guinadas irresponsáveis. "Isso não quer dizer que não haja riscos de atos populistas em alguns países", avisou.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

As mudanças de governos em 12 países da América Latina de dezembro passado até meados de 2007 podem facilitar uma guinada na política econômica desses países?

Continuo descrente em uma virada na economia nesses países, independentemente de os novos governos serem de direita ou de esquerda. Os que vieram da esquerda, nos últimos três anos, demonstraram ser tão ou mais responsáveis que os de centro e de direita na América Latina. Isso não quer dizer que não haja riscos de atos populistas em alguns países. Mas eu combato esse prejulgamento de que, se o governante vem da esquerda, tenderá mais ao populismo e a macroeconomia vai piorar.

A experiência na América Latina mostrou que governos de esquerda adotaram políticas conservadoras na macroeconomia. O que seria dar um passo a mais?

Seria ser progressista. Antes, era aumentar os gastos públicos e adotar medidas populistas, o que prejudicou basicamente os setores de menor rendas ao trazer desemprego, inflação, crise econômica. Hoje, é adotar políticas de distribuição de renda, melhorar a estrutura e eficiência do gasto social, eliminar o clientelismo político nesses gastos. Também envolve a adoção de políticas produtivas, de desenvolvimento regional e de inovação tecnológica e com a promoção de pequenas e médias empresas. Ser progressista, portanto, não é ser desordenado do ponto de vista macroeconômico e manter a economia fechada.

Nesse caso, o Brasil é mais progressista ou populista?

O Brasil adotou uma política fiscal sensata e razoável. Do ponto de vista monetário, talvez, tenha exagerado em algum momento. O Brasil tem de manter os equilíbrios fiscal e monetário, embora eu possa até dizer: cuidado para não ser tão restritivo com a política monetária, com a valorização da taxa de câmbio. Mas há um tempero progressista na atuação do governo porque se pensa nos equilíbrios macroeconômicos.

O que é populismo hoje?

O primeiro tipo de populismo está relacionado ao descuido da macroeconomia, o aumento de gastos públicos, o descontrole inflacionário. O outro tipo pode expressar-se na falta de decisões na área microeconômica, que são necessárias para impulsionar os investimentos, gerar expectativas, promover determinados setores. Portanto, para a economia crescer. O dilema na América Latina é justamente saber como crescer.

Como lidar com o baixo crescimento no Brasil?

A economia brasileira cresceu apenas 2,3% no ano passado, o que dá margem para que as pessoas pensem que a política monetária pode ser mais expansiva. Muitas vezes, essas pessoas são irresponsáveis, do ponto de vista macroeconômico. Mas creio que há uma pequena margem para ser mais expansivo, e é importante usá-la. Senão, a reação política termina com um ato de irresponsabilidade.

Como o senhor veria uma guinada desenvolvimentista na política econômica brasileira? Essa tese vem sendo apresentada como possível mote da campanha de reeleição do presidente Lula por seus assessores.

Há margem para discutir a macroeconomia no Brasil. Ou seja, se a taxa de juros tem de ser 17% ou 16%, se tem de cair mais rápido, se o resultado primário pode ser menor. Mas há de se ter em mente que o superávit fiscal não pode ser zero, nem a taxa de juros básica pode ser de 7%. Ou seja, os limites estão dados. Todos os líderes da América Latina compreenderam que uma desordem na área macroeconômica pode terminar com o governo. Isso não quer dizer que não deva se preocupar mais com o crescimento, com o investimento, com a inovação tecnológica. Visões bipolares - crescer ou ordenar a economia - não funcionam. Ser progressista e ocupar-se do desenvolvimento econômico é obrigatório para o governo mais expansivo e para o menos expansivo.

O argumento de que faltam recursos públicos para algumas políticas, como a de inovação e desenvolvimento regional, é válido no Brasil?

Para muitos países isso é verdade. Mas não para o Brasil, que tem uma carga tributária de 35% a 36% do PIB e não pode elevá-la. Como o Orçamento não dá, com tamanha arrecadação? Há que se pensar como se gasta melhor, como se priorizam as despesas.

O corte nas tarifas de importação poderia ser uma solução para o Brasil conter a valorização do real e controlar a inflação?

Eu não usaria tarifas de importação para o controle da inflação e teria dúvidas em usá-las para equilibrar a taxa de câmbio. As tarifas no Brasil e no Mercosul são muito altas. Mas acho que tem de se pensar em uma estratégia de desenvolvimento de longo prazo. Não se deve falar em abertura comercial associada a questões de curto prazo. O Mercosul, de fato, deveria ser mais aberto. O melhor seria negociar essa abertura na OMC, mas também em acordos com União Européia, com a China, os Estados Unidos, a Coréia do Sul.

Qual seria a alternativa para conter o processo de valorização cambial?

A política monetária, definitivamente, tem a ver com a taxa de câmbio. Mas não se pode resolver a valorização da taxa de câmbio real simplesmente com a política monetária. No Brasil, o câmbio valorizou pouco mais de 20% entre setembro e novembro 2005, relativamente a igual período de 2004. Mas continua desvalorizado em relação à década de 90. É certo que a valorização do real tem de ser tratada. Mas não exageremos. O Brasil ainda é competitivo em relação à década de 90.