Título: Líder destruiu frágil equilíbrio da Iugoslávia
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Fonte: O Estado de São Paulo, 13/03/2006, Economia & Negócios, p. A10

Mas Milosevic achava que as guerras que desencadeou nos Bálcãs eram resposta à agressão contra os sérvios

Até o fim, uma morte solitária, sábado, numa cela de prisão da ONU próxima de um tribunal internacional que ele desprezava, Slobodan Milosevic se aferrou à noção de que toda a destruição dos Bálcãs que ele desencadeou e presidiu foi apenas uma resposta à agressão contra seu povo sérvio havia muito sofredor. "Meu objetivo é apresentar a verdade, e isso toma tempo", disse o ex-presidente sérvio ao tribunal em Haia, num prelúdio aos meticulosos circunlóquios que tentaram, num período de mais de quatro anos, mostrar o autor da destruição da Iugoslávia como um incompreendido dedicado tão somente à defesa daquele país.

A verdade para Milosevic sempre foi, de fato, uma mercadoria a ser manipulada na busca implacável pelo poder. Todos - croatas reinventados como fascistas da 2ª Guerra Mundial, muçulmanos bósnios reclassificados como turcos otomanos saqueadores, os numericamente crescentes albaneses de Kosovo revistos como agentes de "genocídio demográfico" contra os sérvios - foram material útil para o mito de Milosevic de um martírio sérvio.

Esse mito teve um poder inebriante durante muitos anos. Quando o comunismo desmoronou na Europa e na sua Iugoslávia no fim dos anos 1980, Milosevic viu e se apropriou do potencial do nacionalismo como o que Miroslav Hroch, um teórico político checo, chamou de "um substituto para fatores de integração numa sociedade se desintegrando". Propagando um slogan sucinto - "A Sérvia não se ajoelha" - Milosevic, que morreu aos 64 anos de idade, arquitetou uma apoteose vertiginosa para o que vinha sendo uma carreira insípida de banqueiro e burocrata comunista.

Seu método era pouco sutil - a defesa dos sérvios e uma visão gloriosa da história sérvia -, mas caiu bem num povo com uma antiga convicção de que a Iugoslávia do comunista Tito os privara de um merecido poder.

O resultado foi uma violência não vista na Europa desde 1945. Sem ser um Stalin ou um Hitler, Milosevic se mostrou, em 13 anos no poder, um governante de excepcional crueldade sempre pronto a usar a força em várias guerras, da Croácia em 1991 a Kosovo em 1999.

Na verdade, Milosevic destruiu o delicado equilíbrio da Iugoslávia que ele professava defender e depois expressou admiração ante sua destruição violenta. "Quem, eu?" ele parecia estar sempre perguntando, tanto como líder como depois, durante sua longa temporada no tribunal, quando confrontado com repetidas evidências do próprio impulso destrutivo.

Quando a Iugoslávia começou a desmanchar, em 1991, numa série de guerras que deixaram mais de 200 mil mortos, Milosevic suprimiu a autonomia de Kosovo e de outra província, Volvodina, e instalou um líder títere em Montenegro. Como resultado, ele controlava quatro votos dos oito membros da presidência coletiva iugoslava.

Quando os líderes de outras repúblicas iugoslavas espernearam, sugerindo que Milosevic havia transformado a Iugoslávia numa "Servoslávia", o líder sérvio deu uma pirueta típica, declarando que os sérvios estavam na defensiva porque só queriam permanecer dentro de um Estado iugoslavo ameaçado. Depois de destruir todo a mobília, Milosevic se queixava de que ninguém queria mais se sentar com ele.

Seguiram-se guerras - por curto tempo na Eslovênia, depois na Croácia, a mais devastadora na Bósnia e, finalmente, em Kosovo. Enquanto elas transcorriam, Milosevic jamais vacilou na tentativa de retratar a si e aos sérvios como vítimas de "propaganda muçulmana" ou de outras forças malignas fora do seu controle.

"O histórico nacional dos sérvios é de libertação", declarou Milosevic durante sua ascensão ao poder na década de 80. Foi a essa visão que ele e muitos de seu povo desorientado se aferraram até a descoberta de uma série de campos de concentração sérvios na Bósnia em 1992 e o assassinato de milhares de muçulmanos perto da cidade bósnia de Srebrenica em 1995. Durante seu julgamento, Milosevic tentou reforçar sua defesa de que nenhuma das matanças e expulsões conhecidas como limpeza étnica aconteceu por instigação sua.