Título: Melando o jogo
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Fonte: O Estado de São Paulo, 13/03/2006, Notas e Informações, p. A3

O governo federal enviou terça-feira ao Congresso um projeto estipulando regras para regular a movimentação e a estocagem de gás natural no País. Na verdade, o projeto parece destinado a preservar o monopólio virtual da Petrobrás sobre o transporte de gás - ou seja, sobre os gasodutos - para o que precisa sustar a tramitação do outro projeto sobre o mesmo assunto, de autoria do ex-ministro de Minas e Energia Rodolpho Tourinho, apresentado em 2005 e em discussão na Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

O projeto oficial não esconde a oposição do governo à liberação desse mercado. No mês passado, em nota oficial, a Petrobrás se insurgia contra o projeto Tourinho, sugerindo que ele poderia perturbar os investimentos no setor. Na prática, o que fez foi defender o controle quase absoluto que exerce sobre esse mercado.

Os projetos de Tourinho e do MME são antagônicos. O primeiro pretende reproduzir, no mercado do gás, a abertura registrada com a Lei do Petróleo, que atraiu grandes investimentos estrangeiros para o País.

A questão central diz respeito ao acesso aos gasodutos existentes e à construção de novos, ou seja, à infra-estrutura física de transporte. O projeto oficial pretende que esse assunto seja disciplinado pela Agência Nacional de Petróleo (ANP).

Quanto aos gasodutos já construídos, em construção ou em fase de análise ambiental, os direitos de uso seriam reservados ao proprietário por até 35 anos. A Petrobrás controlará, até meados de 2030, o Gasoduto Bolívia-Brasil.

O acesso aos gasodutos depende de autorização da ANP. Tourinho propôs substituí-lo pelo regime de concessão, que daria maior garantia à participação de companhias privadas.

Quanto à construção de novos gasodutos, o projeto Tourinho propõe que seja feita, obrigatoriamente, por licitação, enquanto no projeto oficial o governo é que decidiria, em cada caso, se adota o regime de licitação ou de autorização para construir.

Em suma, o modelo da autorização mantém o poder discricionário do governo, como critica o ex-ministro do MME.

O governo evita criar um marco regulatório preciso, que teria de incluir regras básicas - como as relativas à fixação dos preços. Quer que as tarifas sejam fixadas pela ANP.

O envio do projeto oficial mostrou o temor do governo de que o Senado lhe infligisse uma derrota, aprovando a Lei do Gás em tramitação. Isto ficou evidente, pois estava em curso uma negociação entre Tourinho e o líder do governo, Aloizio Mercadante, para aparar arestas. Alguns pontos de discórdia já haviam sido discutidos com a Petrobrás e, em parte, removidos do projeto, como a criação do Operador do Sistema Nacional do Transporte de Gás Natural (Ongás, à semelhança do ONS, que supervisiona o setor elétrico). E o ex-ministro concordara em manter o gás no âmbito da ANP.

Mas o governo não se satisfez e parece ignorar que, com o mercado controlado pela Petrobrás, o País estará malservido de gás natural e de gasodutos. A malha de apenas 5,4 mil km de dutos é insuficiente para o abastecimento, não só da Região Nordeste, onde termoelétricas já não podem gerar energia por falta de gás, como também das demais regiões.

Com a Lei do Gás, seria possível atrair grandes companhias estrangeiras, provavelmente as únicas com capacidade de obter crédito a baixo custo para investimentos de longuíssimo prazo para construir gasodutos. E que não são isentos de risco, dada a dependência do Brasil do gás boliviano, situação que não vai mudar até a próxima década, na melhor das hipóteses.

O abastecimento de gás tende a ser precário pelo menos até 2009, quando está previsto o início da extração nos poços da Bacia de Santos. O gás terá de ser transportado dos campos marítimos para Caraguatatuba e, de lá, para os grandes centros consumidores. Isto exigirá a construção de um duto de interligação. O acesso será definido pelo governo, a menos que seja aprovado o projeto Tourinho.

Sem regras tarifárias claras, o Brasil dá-se ao luxo de ignorar a vantagem de construir dutos com recursos de project finance, financiamentos de longo prazo que são pagos com a venda dos produtos gerados. Em síntese, o projeto do governo só faz retardar decisões de investidores privados em gás.