Título: É a vez da confiança no Estado de Direito
Autor: Lourdes Sola
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/03/2006, Espaço Aberto, p. A2

"Uma democracia só existe na medida em que seus ideais e seus valores a fazem existir" (Giovanni Sartori) O cenário político brasileiro apresenta tendências contrastantes entre o que os analistas entendem por risco eleitoral, em declínio desde 2002, e a forte elevação do risco institucional. Em termos eleitorais, o quadro político adquiriu contornos mais precisos, com a candidatura Alckmin pelo PSDB e pelo PFL e com a decisão do Supremo Tribunal Federal pela verticalização. Se comparado a 2002, é um cenário de baixo "risco eleitoral", nos termos equacionados pelos mercados, ou seja, vitória provável de candidatos comprometidos com políticas macroeconômicas que não ameacem a solvência fiscal do País e a estabilidade monetária. O desempenho passado dos candidatos Alckmin e Lula autorizava presumir que o compromisso com a disciplina fiscal e a estabilidade econômica seriam fatores de convergência, e não de disputa entre ambos, no suposto forte de que o então ministro Palocci continuaria fiador da política econômica, caso Lula seja reeleito.

O ex-ministro Palocci, de fato, foi o arquiteto da virada histórica de 2002 ao conseguir reverter a crise de confiança dos mercados. Por trás dessa aposta, um cálculo político baseado em dois supostos familiares para os que têm sólida formação marxista (caso do ex-ministro): credibilidade é precondição para atrair um fluxo regular de investimentos privados num mundo globalizado; e investimentos são requisito essencial para crescimento sustentável e geração de emprego - condição de legitimidade política junto ao grande eleitorado. Fechar-se-ia, assim, um primeiro círculo mágico de poder (há vários) graças à convergência entre credibilidade financeira e legitimidade política, com o casamento entre os interesses dos mercados e os da população, selado pelo carisma e pelo pragmatismo do presidente.

Os episódios que culminaram na queda do ministro suscitam duas perguntas. O que havia de errado ou de insuficiente na estratégia original? Em que medida se confirma o quadro de não-contaminação da economia pelas "crises políticas"? Alguns elementos do novo quadro de incerteza ajudam a encaminhar as respostas.

O saldo econômico da aposta de Palocci e Lula é positivo. O ajustamento estrutural do setor externo está em via de se completar, apontando para a eliminação do fantasma que assombrou a democracia brasileira nascente, a dívida externa, a maior restrição ao crescimento. Parte desse saldo cabe ao dinamismo do setor privado: reservas em alta, relação dívida-PIB em baixa e a redução dramática da dívida externa em termos absolutos. E parte, à política econômica de Palocci, por reforçar (em lugar de frustrar) a mudança estrutural em curso. É conquista irreversível da qual os vitoriosos nas eleições de outubro serão beneficiários, embora se espere boa dose de volatilidade nos mercados. O risco eleitoral, portanto, mudou de cara e de qualidade para melhor.

Em contraste com o cenário econômico, a confiança nas regras do jogo democrático, na classe política, na eficácia do Estado de Direito, a erosão nas relações entre Poderes passam por sucessivos "testes de stress". Apontam para uma forte elevação do risco institucional. Por isso, os dois episódios que marcaram a semana passada, tendo como protagonistas a deputada Ângela Guadagnin (PT-SP) e o caseiro Francenildo Costa, têm grande eficácia simbólica, além de política. No plano simbólico, pelo contraste radical entre os valores e as aspirações que cada um deles associa à democracia. De um lado, a celebração lúdica da impunidade, no espaço público da Câmara dos Deputados, em nome da solidariedade com um membro do "seu partido". De outro, a obstinação de Nildo em valer-se das regras do Estado de Direito para afirmar um princípio impessoal: a liberdade de contestar como ilegítimo o uso manipulativo do espaço público - o grande palco da CPI - pelo ministro do governo que ajudou a eleger. A deputada optou por um princípio particularista, pela cumplicidade travestida de solidariedade com uma das partes, escudada nos interesses organizados que "seu" partido mobiliza, e confiante nos recursos políticos e nas compensações que lhe propicia "seu" governo. O caseiro, típico representante dos "interesses não-organizados" e, portanto, excluído até dos poderes da sociedade civil, entrou com a capacidade de discriminar entre o que "é direito e o que não é", sem distinção de poderes e saberes. Qual dos dois personifica os valores republicanos?

O contraste não se esgota em seu valor simbólico. Suas conseqüências políticas atestam que os riscos institucionais (e eleitorais) revelados pelas transgressões do governo às regras do Estado de Direito foram registrados e parcialmente punidos: uso indevido dos recursos de Estado, coação de testemunha, insegurança jurídica e institucional, recurso abusivo aos tribunais superiores. Mas a queda do ministro e a demissão do presidente da Caixa obrigam a registrar um outro desafio. A democracia depende dos níveis de confiança nas estruturas regulatórias garantidas pelo Estado, que os politólogos chamamos de instituições democráticas (tal como a confiança dos mercados depende da eficácia das instituições econômicas). A confiança depende da formação de uma consciência cívica capaz de conceber e diferenciar o que é do interesse comum.

A semana passada trouxe para o centro do palco uma luta entre dois princípios de ordenamento social, personificados na deputada e no caseiro - que deverão disputar os corações e as mentes do eleitorado, da opinião pública e da classe política nos próximos anos.

Lourdes Sola, professora da USP, com doutoramento em Ciência Política em Oxford, é consultora da MB Associados. E-mail: lourdes.sola@MBassociados.com.br