Título: Ranço ideológico
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/03/2006, Notas e Informações, p. A3

Há no ar um certo ranço de animosidade ideológica, oportunista, contra o Exército - e, por extensão, as Forças Armadas e os militares, em geral -, como se mágoas acumuladas por décadas, contraídas ao tempo da ditadura militar, permanecessem incubadas mesmo depois da plena - e já antiga - redemocratização do País, para aflorarem em qualquer momento difícil atravessado pelas Armas - mesmo que em nada tenham contribuído para sua ocorrência. Associações estapafúrdias são feitas - como da desastrada "carteirada" de um general com difíceis operações de tropas brasileiras nas favelas cariocas e no Haiti - desprezando-se, no caso da ocupação de morros no Rio, o contexto do conflito entre a força desafiadora do crime organizado e a necessidade de preservar a autoridade do Estado sobre sua base territorial.

Há que se considerar, antes de tudo, que não estão unicamente no Rio os efeitos do aumento descomunal de poderio e sofisticação do crime organizado, uma das vertentes perversas da atual era da globalização - o que é lucidamente desenvolvido pelo escritor venezuelano Moisés Naím, editor da revista americana Foreign Policy e autor do livro Ilícito (conforme entrevista concedida a Paulo Sotero, no caderno Aliás de domingo). A facilidade da aproximação entre os países pela intercomunicação global aumentou substancialmente o poder de fogo e a capacidade gerencial das empresas criminosas - de contrabando de drogas, de armas, de produtos pirateados e até de gente - que "lavam" e passam à frente, a cada ano, cerca de US$ 5 trilhões, ou quase 10% do PIB mundial. Particularmente na América Latina, como aponta Naím, "a penetração dos operadores dos vários tráficos nos corpos policiais é quase total". Isso resulta numa situação de superioridade "bélica" e estratégica, do crime organizado, que passou a disputar, com vantagem, tutelas exercidas pelos Estados.

Faz tempo que o crime organizado montou nas favelas do Rio uma estrutura de Estado paralelo, tornando-se provedor de serviços públicos às populações e exercendo - sempre de forma implacável - um "disciplinamento"pára-judicial, controlador das atividades e da vida cotidiana das comunidades. O problema é que o crime organizado adquiriu tamanha força que começou a desferir ataques preventivos às forças policiais incumbidas de sua repressão, com o objetivo de desmoralizá-las, e com isso dissuadi-las de criar quaisquer obstáculos à atividade criminosa. Depois de assim agir, com inúmeras agressões à polícia estadual do Rio, os grupos de traficantes resolveram ir adiante e atacar o Exército nacional, invadindo um de seus quartéis, humilhando seus soldados e roubando 10 fuzis e uma pistola - armas de que certamente nem precisavam, tão fortemente municiados já estão, há tanto tempo. O Exército reagiu à acintosa agressão fazendo diligências nas favelas.

Evidente está - ao contrário do que muitos têm considerado, até com certa dose de aleivosia - que o Exército brasileiro não pretendeu revestir-se das funções específicas da polícia estadual. Entenda-se que não poderia ficar inerte ante a acintosa agressão, nem à tentativa de usurpar-se ao Estado a soberania de alguma parte de sua base territorial - o que acontece quando alguma autoridade pública, de qualquer esfera, precisa de "salvo-conduto" para transitar em território dominado por criminosos. Sem dúvida a operação deixou de ter uma elaboração estratégica maior, a prevenir as previsíveis dificuldades que causariam comunidades dependentes do poder do narcotráfico, como as manifestações de hostilidade contra as tropas do Exército. O maior erro, no entanto, foi o Exército anunciar que a operação era para recuperar aquelas suas armas roubadas e só terminaria quando as retivesse. Com isso se colocou numa verdadeira armadilha, pois encontrar 11 armas em algum lugar, a esta altura, seria tão difícil quanto achar uma justificativa para não cumprir o objetivo de reavê-las. Seja como for, é preciso reter em mente - libertos do ranço ideológico antimilitar - que a operação do Exército brasileiro nas favelas do Rio tem o objetivo preciso - e patriótico - de impor limites aos que pretendem transferir as tutelas do Estado para as organizações criminosas. E que isso foi feito no estrito cumprimento das leis em vigor, elaboradas em pleno estado de direito.