Título: "É preciso acabar com o estelionato pela via judicial"
Autor: Márcio Chaer
Fonte: O Estado de São Paulo, 29/03/2006, Nacional, p. A14

Gilmar Mendes, ministro do Supremo Tribunal FederalEntrevistaAs milhares de leis brasileiras poderiam estar reunidas em apenas 500 textos. Mas o Congresso não se animou com a idéia. Para frustração do autor da lei, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Ferreira Mendes. Mas Gilmar não pode reclamar de fracassos no campo legal. Foi ele quem produziu o anteprojeto que criou os juizados especiais federais e a lei que regulamentou seu funcionamento.

É dele também a autoria intelectual da ação declaratória de constitucionalidade (ADC), instrumento que afasta qualquer questionamento sobre a validade de uma lei. Mais tarde, produziria a regulamentação dessa ação e de outra que virou o maior acontecimento recente do STF: a ação direta de inconstitucionalidade (Adin). Outra concepção do ministro foi a argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) - instituto que veio para derrubar leis anteriores a 1988.

Em vez de julgar milhares de ações que contestam a constitucionalidade de uma lei, caso a caso, o tribunal pode racionalizar o processo.

Gilmar pôde legislar a partir dos cargos que ocupou na área jurídica do governo. Como advogado-geral da União, criou uma forma de defender o Estado. No Supremo há quase quatro anos, continuou arquitetando soluções racionalizadoras. A ponto de merecer de seu colega Celso de Mello o qualificativo de "o grande doutrinador do STF."

Nesta entrevista, a quarta da série com os ministros do STF feita pelo site Consultor Jurídico para o Estado, Mendes explica suas iniciativas.

O que muda no STF com a renovação de seus quadros?

O tribunal está em transição desde a promulgação da Constituição de 1988, que trouxe novos institutos e o desafio de novas interpretações. A renovação dos últimos anos tem contribuído para a mudança de entendimento em relação a temas que se solidificaram, de acordo com interpretações retrospectivas.

Ou seja, a renovação acelerou o processo de mudança?

É evidente. Os novos integrantes já chegaram embebidos das reflexões sobre o novo contexto dogmático e doutrinário e sobre as críticas desenvolvidas a propósito das orientações tradicionais da corte.

O senhor participou da criação de diversas leis que estão no centro do sistema judicial. Qual a intenção que norteou suas propostas? Cada proposta teve seu contexto, mas, de forma geral, sempre houve e ainda há uma forte necessidade de modernizar e racionalizar o sistema. Nesse esforço, criamos, no governo Collor, uma espécie de check-list para a criação de leis. Essa mesma preocupação - de modernização e de racionalização - norteou as iniciativas para reforçar o papel do STF como órgão de efetivo controle constitucional.

Qual sua meta ao conceber o projeto de lei que regulamentou a ação direta de inconstitucionalidade, a ação declaratória de constitucionalidade e a ação de descumprimento de preceito fundamental?

A criação da ADC foi motivada pela necessidade de aperfeiçoamento do modelo de controle abstrato. O objetivo dos projetos foi consolidar as conquistas obtidas pela jurisprudência do Supremo e a introdução de mudanças relevantes.

A criação dos juizados federais também veio nesse sentido?

Esse projeto decorreu de decisão pessoal do então presidente Fernando Henrique Cardoso, que se comprometeu com o ministro Nelson Jobim, que já estava no STF, a encaminhar projeto de emenda para disciplinar as competências para julgar pedidos de habeas-corpus no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no STF. O presidente recomendou que fizéssemos algo para democratizar o acesso à Justiça.

Mas os juizados especiais já não estavam previstos desde 1988?

Os juizados especiais comuns, sim. Os federais, não. A noção de que se poderia utilizar a fórmula em nível federal só foi introduzida com a Emenda Constitucional nº 22, de 1999. Do ponto de vista de democratização do acesso à Justiça, essa foi a mais importante inovação do sistema jurídico pós-1988. Causas que antes consumiam dez anos passaram a ser decididas em menos de um ano.

Essas mudanças têm algo que ver com o fenômeno que se deu na redemocratização, em que o governo federal passou a ser alvo de vultosas indenizações, em que a União sistematicamente saía derrotada das disputas?

A Constituição de 1988 retirou do Ministério Público Federal a incumbência de defender a União, quando se intensificaram as demandas. Com exceção da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, não havia um órgão para assumir a defesa da União naquele contexto adverso, onde havia uma montanha de ações (sobre planos econômicos etc.). Era notória a desigualdade de forças e a consolidação da AGU consumiu muito esforço. Era preciso consertar o avião em pleno vôo.

Como foi a transição de pessoal?

Foi difícil. A opinião pública emprestava significado decisivo às atividades do MP, especialmente, e atacava as posições governamentais. Havia uma fantasia: enquanto o advogado privado ou o procurador ganhava toda a mídia, o advogado do governo era satanizado.

Essa torcida contra o governo seria um reflexo condicionado adquirido no regime militar?

Chamei essa orientação de processo de antropomorfização do Estado. Ou seja: confunde-se a União com o eventual ocupante do poder. Essa visão consolidou-se durante o regime militar e prosseguiu no processo de redemocratização. Uma derrota eventual da União era interpretada como derrota do governo, especialmente do governante. Os próprios partidos de oposição manipulavam essa noção, instrumentando o Ministério Público, institucionalmente, para suas causas. Por outro lado, grupos menos escrupulosos aproveitavam-se dessa "ideologia" para praticar o que chamei de estelionato pela via judicial. Algo que ainda se vê por aí e que é preciso combater.