Título: O sagrado e o racional
Autor: Helio Jaguaribe
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/02/2006, Espaço Aberto, p. A2

As violentas manifestações de protesto nos países islâmicos contra a publicação, em jornais europeus, de caricaturas ridicularizantes do profeta Maomé estão suscitando um novo momento de reflexão sobre os limites - se acaso algum se admita - da liberdade de imprensa. Pouco importa, para a questão em debate, o fato de se ter comprovado que tais manifestações não foram espontâneas, mas ocorreram, meses após a publicação daquelas caricaturas, pela coordenada mobilização de um grupo de líderes religiosos. O que está em jogo, num primeiro momento, é determinar se entre os limites a que deva se submeter à liberdade de imprensa figure o respeito ao sagrado. Num plano mais profundo, situa-se a complexa relação entre o sagrado e o racional. Pode o sagrado ser legitimamente objeto de crítica racional?

A questão da liberdade de imprensa se encontra, em nossos dias, submetida a uma grande duplicidade. Duplicidade, por um lado, por parte de sociedades sujeitas a regimes de intolerância por razões políticas, como na Coréia do Norte, ou religiosas, como nos países islâmicos. Em tais sociedades a imprensa é submetida ao mais estrito controle, mas nelas são freqüentes reivindicações de liberdade de imprensa com relação à manifestação de suas ideologias em países ocidentais, como constantemente ocorre com grupos islâmicos radicados na Europa.

Outra e, em muitos sentidos, mais grave duplicidade em matéria de liberdade de imprensa se observa em países ocidentais. Assim, nos EUA, uma autocensura é exercida na quase totalidade dos jornais relativamente a temas ou assuntos que afetem o interesse nacional norte-americano e, em ampla medida, sejam considerados desrespeitosos com relação ao presidente da República e a altas instituições do país. Contrastante atitude se observa no Brasil, onde críticas as mais descabidas a nosso país, procedentes do exterior, encontram espaço de divulgação na nossa imprensa.

Igual duplicidade se pode constatar, no mundo ocidental, no que diz respeito ao sagrado. A mesma liberdade de caricaturar Maomé dificilmente encontraria espaço jornalístico para vexatórias caricaturas da Virgem Maria ou de Jesus Cristo. Isso não obstante o fato de as sociedades ocidentais, contrastando com as islâmicas, serem predominantemente agnósticas - quase totalmente na Dinamarca e demais países nórdicos.

Impõe-se, assim, ainda que muito sucintamente, uma reflexão sobre o que seja o sagrado e sobre a medida em que sejam legítimas as críticas racionais a que possa ser submetido.

O sentimento do sagrado figura entre os mais antigos sentimentos do homem. No Paleolítico Superior essa relação se exprime em pinturas rupestres e por ritos que puderam ser reconstituídos. No Neolítico esse sentimento conduziria à adoração de deusas da fertilidade e, na idade do bronze, a diversas modalidades de politeísmo, das quais retivemos, particularmente, a helênica. Esse sentimento conduziria, finalmente, às grandes religiões monoteístas. O que pensar do sagrado nas condições culturais de nossos dias?

Em matéria tão complexa, em que se diferenciam no mundo ocidental agnósticos e crentes, cabe admitir que predomina, de forma amplamente consensual, o reconhecimento de que se impõe a todos uma atitude de respeito com relação ao sentimento do sagrado por parte dos seguidores das grandes religiões. Essa atitude de respeito deixa de ser consensual e ampla com relação a "religiões primitivas", consideradas parte do folclore mesmo quando, como no caso do nosso país, significativa parcela da população participa de tais crenças.

É a partir dessas considerações que se pode constatar, no mundo ocidental, o fato de que o que está em jogo, no tocante ao sagrado, é a medida em que se consideram satisfatoriamente "racionais" as crenças implicadas num sentimento do sagrado. As crenças judaico-cristãs se beneficiam dessa presunção. Assim, quanto menos racionais forem consideradas as crenças religiosas, tanto menor o respeito que suscitam seus sentimentos do sagrado.

Ante os inúmeros aspectos que essa matéria comporta, salientarei apenas dois, que se situam em diferentes planos. O primeiro aspecto a ressaltar é o da absoluta legitimidade de todas as críticas racionais ao sagrado. A razão é o supremo atributo de homem e a ela deve estar sujeito tudo com que o homem se relacione. Crítica racional, entretanto, não tem nada que ver com escárnio ou insulto, e sim com objetivas modalidades de análise científico-filosófica. Essas mesmas análises que legitimamente conduzem muitos ao agnosticismo.

Outro distinto aspecto de relacionamento com o sagrado decorre de uma dupla consideração. A primeira diz respeito à intrínseca respeitabilidade que as modalidades do sagrado apresentam no âmbito de cada cultura. Dessa respeitabilidade cultural se reveste, no mundo ocidental, o sagrado judaico-cristão. A segunda consideração é de caráter social. Requerem respeito, no seu respectivo âmbito de vigência cultural, ou em razão deste, as modalidades do sagrado partilhadas por amplos contingentes humanos. É nesse sentido que merece reprovação e, se necessário, interdição pública a divulgação pela imprensa de caricaturas e outras manifestações ofensivas a uma grande religião, como a maometana. Igual consideração cabe se fazer, no caso do Brasil, em relação a crenças e ritos primitivos de que participam amplos setores da população, dos evangélicos ao candomblé, sem prejuízo da crítica racional à que fazem jus.