Título: Davos e a mão visível do Estado
Autor: Nelson Brasil de Oliveira
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/02/2006, Economia & Negócios, p. B2

O recente encontro do Fórum Econômico Mundial em Davos mostrou que o Primeiro Mundo está se rendendo ao sucesso dos países asiáticos que não rezaram pela sua cartilha de política econômica. Coréia do Sul, Índia e China, nações que optaram por estratégias de desenvolvimento e globalização autônomas, firmemente conduzidas pelo Estado, foram desta vez cortejadas pelas grandes potências. Isso porque demonstraram, da maneira mais cabal e irrefutável - ou seja, com resultados concretos por todos reconhecidos -, que o melhor caminho para o desenvolvimento sustentado é o do meio: aliar as vantagens da economia de mercado com políticas públicas realistas e consistentes.

Já na primeira edição do fórum, 15 anos atrás, o "Deus Mercado" foi apresentado como a única solução para todos os problemas econômicos do mundo, desde a erradicação da miséria e a eliminação dos estigmas sociais até o pleno e igualitário desenvolvimento de todas as nações. Desde então, a palavra de ordem - inclusive, e principalmente, para os países menos desenvolvidos - era a redução da presença do Estado na economia via desregulamentações e privatizações. Daí surgiu a máxima, muito repetida pelos nossos economistas tupiniquins: "A melhor política industrial é não ter política industrial."

O dogma que atribuiu poderes divinos ao mercado foi inspirado no clássico tratado de teoria econômica A riqueza das nações, de Adam Smith, editado há mais de dois séculos. Segundo Smith, da interação entre indivíduos num mercado livre, mesmo inexistindo uma entidade formalmente constituída para guiá-la, sempre resulta um ordenamento natural da atividade econômica, gerado pela "mão invisível do mercado". Trata-se, obviamente, de uma situação ideal, utópica. Apenas uma leitura apressada e estreita dessa grande obra poderia suscitar a absurda condenação da interferência do poder público visando a reduzir assimetrias estruturais.

Na realidade atual, como bem mostra o modelo asiático - em especial a Coréia do Sul -, é imprescindível para o desenvolvimento de um país que haja alocações eficientes de recursos e crédito de forma a atender a prioridades estratégicas de Estado, visando a acelerar o processo de industrialização e a alcançar uma forte presença do país no comércio internacional. No desenvolvimento econômico do Leste Asiático, o Estado teve um desempenho extremamente positivo. Na Coréia do Sul o governo exerceu uma efetiva e saudável parceria com empresas locais, constituindo-se em parte integrante do sistema produtivo interno e convivendo com o setor privado em mercado aberto e plenamente competitivo internacionalmente.

Para o sucesso de um modelo semelhante ao coreano no Brasil, algumas mudanças estruturais e de atitudes seriam indispensáveis, tais como definição de um planejamento estratégico de Estado que não fosse restrito a um único governo, ou seja, com caráter plurianual, direcionado ao desenvolvimento de unidades produtivas locais para atender a objetivos estratégicos (dentre eles acessar mercados externos); quadros e gerenciamento públicos não menos competentes do que os do setor privado; e sólida vontade política dos governos para a execução dos projetos.

O Brasil chegou a adotar, com enorme sucesso, um modelo similar na instauração da indústria petroquímica nos anos 70, e tentou repetir o modelo com a química fina a partir de 1984, mas, ao término daquela década, quando começavam a surgir os primeiros resultados positivos dessa política, o governo que emergiu das urnas em 1989 literalmente desmontou esse modelo: cerca de mil unidades produtivas da indústria foram fechadas em poucos anos, e outros 500 projetos na área da química fina foram inviabilizados.

Coréia do Sul e Índia não acompanharam essa lamentável guinada do governo brasileiro. Como resultado disso, hoje Davos consagra essas nações asiáticas como prioridades para investimentos. Se fossem japoneses, os neoliberais tupiniquins que tão ardorosamente apoiaram a forma irresponsável da abertura do mercado interno nos anos 90 teriam de se desculpar publicamente pelo equívoco cometido.

Esta última edição do fórum nos permite concluir que, para se atingir o desenvolvimento econômico sustentado no Brasil, é imprescindível a mão invisível do mercado, mas ela deve ser apoiada pela mão visível do Estado.