Título: Médicos vendem kits de célula-tronco em pó
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Fonte: O Estado de São Paulo, 23/02/2006, Vida&, p. A19

'Jornal Nacional' denuncia duas clínicas em São Paulo

Médicos brasileiros estão vendendo, caro, ilusões embaladas no discurso sobre as esperanças suscitadas pelas terapias com células-tronco. O Jornal Nacional, da Rede Globo, denunciou ontem dois médicos por aplicarem golpes contra parentes de crianças com paralisia cerebral. O primeiro, Fernando Requena, recomendou à empresária Lucila Medeiros, mãe de Karine, hoje com 3 anos, um tratamento à base de "pó com células-tronco". Segundo Lucila, Requena afirmou que já estava trabalhando com células-tronco e o caso de Karine era "muito viável". A menina teve febre alta ao tomar a primeira dose e convulsões, quando tomou a segunda. "Ela ficou dura, branca, gelada, sorte que havia gente perto e todo mundo acudiu", lembrou Lucila.

O médico tentou esclarecer seus métodos pelo telefone. "Eu falei para ela que ia dar uns precursores de células-tronco. Ela sabia que não estava regulamentado", disse. "Esses neurotransmissores não está determinado que é para melhorar. O que eu estou fazendo, estou dando aminoácidos", justificou. Os rótulos indicam que o pó é um complexo de tecidos desidratados, como fígado e medula.

'TERAPIA SELVAGEM'

A outra médica denunciada possui uma "clínica de medicina avançada" em São Paulo. A reportagem da Globo levou os dados de uma criança de 6 anos de idade, também com paralisia cerebral. Shirley de Campos, a médica, diz que oferece um tratamento baseado em um "estudo paralelo, selvagem, que nem está regulamentado". Após uma pausa retórica, ela diz que a terapia envolve riscos. "Mas o maior risco da criança é como ela está", completa.

Shirley então diz explicitamente que faz "contrabando" de "concentrados de células-tronco" da Alemanha, extraídas de tecidos do cérebro, placenta e cordão umbilical. A médica explica que não mantém os concentrados em estoque para evitar ser flagrada por uma fiscalização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) com medicamentos não registrados no Ministério da Saúde. "Aí vem o CRM (Conselho Regional de Medicina) tomar meu registro... Vocês sabem como são esses procedimentos."

A médica diz também para que a repórter, que se passa por tia do paciente, não diga nada a ninguém. "Senão aparece bispo nos condenando ao inferno."

Enquanto os concentrados não chegam da Alemanha, Shirley receita ampolas - cada uma custa R$ 66. A médica diz que as ampolas contêm células-tronco "diluídas mais de cem vezes". Procurado pela reportagem, o farmacêutico João Roberto Teruia nega essa informação e diz que se trata de um preparado com proteínas que pode ser empregado como fortificante.

No rótulo, a orientação é que a aplicação seja intramuscular. Mas Shirley receita um dose diária, direto na veia da criança. "Com isso, será criado um negócio chamado sinalização celular."

VÍRUS E BACTÉRIAS

Especialistas da Universidade de São Paulo (USP) foram procurados pela reportagem do Jornal Nacional. "O pozinho são restos de células, e nas ampolas não tinha célula nenhuma", avaliou Mayana Zatz, professora-titular de genética da USP. "O que se pode dizer com certeza é que não há célula-tronco em pó", acrescentou.

Segundo a geneticista, um tratamento como o recomendado por Requena e Shirley pode ter conseqüências graves: "Não se sabe o que tem lá dentro, pode haver bactérias e vírus e causar dano enorme."