Título: 'Eu sei que não tenho carisma'
Autor: Angélica Santa Cruz
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/03/2006, Nacional, p. A10

Cláudio Lembo assumirá o governo de São Paulo após carreira política que diz ter construído por acaso

Em três décadas de vida pública, o vice-governador Claudio Lembo (PFL-SP) só perdeu o controle por três vezes. Na primeira, desligou o telefone com muita força. Na segunda, bateu na mesa com tanta vontade que derrubou três quadros pendurados em uma parede de compensado. Na última, expulsou de sua sala um grupo que - segundo explicou depois - lhe faltou com o respeito. Em todos os outros momentos de sua carreira, Lembo permaneceu impassível - exatamente como estava no dia em que recebeu a notícia de que, a partir de 31 de março, será o 31º governador de São Paulo.

Sentado em seu gabinete no Palácio dos Bandeirantes, manteve a agenda inalterada enquanto o PSDB anunciava a candidatura do governador Geraldo Alckmin à Presidência da República. A quem telefonou perguntando que marca pretende imprimir no governo, Lembo respondeu: "Vamos ser francos, em nove meses não dá para imprimir marca pessoal." E a quem indagou se está no auge da carreira, saiu-se com essa: "No momento da vida em que estou, não existe auge!"

O próximo governador de São Paulo tem 71 anos e reúne todas as características de um certo tipo de político da direita católica. É discreto, cultiva hábitos rígidos, se veste de forma austera, tem uma ironia fina que costuma arrancar risadas até de adversários, devora livros sobre doutrina, é homem de bastidores - e especialista em sobrevivência política. Há décadas, é descrito na imprensa como um personagem curioso. "É alto, magro, cioso de uma elegância severa", escreveu, em 1979, o jornalista Claudio Abramo. "É o retrato acabado do liberal realista (...) Seu realismo se caracteriza pela ausência de radicalismo", resumiu, em 1978, Getúlio Bittencourt. "Homem afável, racé e bem humorado", definiu, em 1976, Samuel Wainer. "Eu acho que sou assim: um político que sabe que não tem carisma, mas que tem senso de dever público. São Paulo não terá surpresas nesses nove meses", descreve ele mesmo.

O traço mais marcante de Cláudio Lembo é sua coleção de costumes, a maioria com origem em algum ponto de seu histórico familiar. Alguns de seus hábitos vieram da infância pobre. Ele jamais deixa comida do prato ("minha mãe proibia", explica), não compra calças para usar fora de compromissos profissionais ("calça esporte é calça velha!"), janta sopa ("não tinha outra opção") e, até pouco tempo, evitava riscar livros ("meu pai dizia: não rabisca, porque a gente pode precisar vender depois"). Hoje, é dono de um patrimônio de R$ 12,5 milhões - mas mantém suas manias dos tempos difíceis.

Lembo é o único filho de uma costureira chamada Rosa - uma mulher de pulso firme que morreu quando ele tinha 27 anos - e do mestre-de-obras Leonino - um filho de italianos que passou para o herdeiro o costume de andar sempre de terno, mas não se saiu bem na tentativa de ensiná-lo a tocar violino. Aos 12 anos, mudou para uma casa na Bela Vista que ainda mantém na fachada a data de construção: 1890. Aos 22, foi dar uma olhada na quermesse da Igreja do Divino Espírito Santo, viu em uma das barracas a vizinha Renéa de Castilho, tomou coragem para chegar perto e, três anos depois, casou com ela. Os dois foram morar na casa comprada por Leonino e estão lá até hoje.

BOM HUMOR Com o tempo, o casal incorporou à casa original outros três imóveis vizinhos e formou um sobradão com quatro andares, várias entradas, passagens e escadarias que resultam em uma aparência de labirinto. Na semana passada, eles estavam na dúvida se mudariam para a residência oficial. Se isso acontecer, será a primeira vez que moram fora do casarão.

O futuro governador e sua mulher seguem uma rotina com poucas mudanças, mas bem-humorada. Todos os dias, acordam cedo. Depois do café, dona Renéa pega uma bolsa e anuncia que "já vai", como se estivesse saindo de casa. Mas apenas cruza a garagem e vai até uma pequena construção onde funciona o escritório de advocacia da família. Ele, já de terno, vai para a biblioteca, um outro anexo do sobrado formado com uma casa construída em 1920 e decorado com duas estantes, uma mesa, dois sofás brancos e caricaturas emolduradas. Lê os jornais e, em seguida, entra no carro oficial acompanhado do motorista e de um dos dois ajudantes de ordem responsáveis por sua segurança.

À noite, mesmo que tenha compromissos, Lembo dá um jeito de chegar em casa a tempo de jantar com a mulher. Nos fins de semana, costuma sair para almoçar com dona Renéa, o filho e as três netas . "Vida tranqüila, né?", resume dona Renéa.

Lembo também cultiva hábitos com explicações afetivas. Há décadas, leva para seus gabinetes uma cadeira de madeira de linhas retas, que seu pai usava para tocar violino. É dela que vai agora comandar o Estado. Outro costume: desde 1999, só usa gravatas pretas, como forma de lembrar a morte do filho, Cláudio Salvador, um engenheiro parecido com o pai e morto aos 37 anos em razão de insuficiência hepática - de acordo com Lembo provocada por remédios contra depressão mal administrados.

A trajetória política de Lembo acompanha a calmaria de sua vida pessoal. Começou em 1974, quando ele foi chamado pelo ex-prefeito Olavo Setúbal - o dono do Banco Itaú com quem já trabalhava desde 1959 - para assumir a Secretaria de Negócios Extraordinários. O vice-governador garante que nunca houve planejamento no que aconteceu depois. "O meu carisma político é o acaso", diz.

E recita os principais fatos de sua biografia política, inclusive as disputas onde já entrou perdendo. "Em 1974, ninguém queria ser o presidente da Arena. Eu aceitei. Foi um acaso. Em 1978, ninguém quis ser candidato ao Senado porque o concorrente, Franco Montoro, tinha um prestígio notável. Eu fui. Outro acaso. Depois o Jânio Quadros foi eleito e me levou para ser o secretário dos Negócios Jurídicos. Acaso! Aí fui candidato a vice de Aureliano Chaves, em uma campanha miserável. E o PFL me indicou para ser vice do Geraldo. Tem algum roteiro nisso?" No caso de Lembo, é possível falar em baita sorte mesmo. Há 32 anos, com alguns poucos intervalos, o acaso o manteve perto do poder.