Título: Investigação testará se governo cumpre lei
Autor: Paulo Moreira Leite
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/03/2006, Nacional, p. A6

Apuração no episódio do caseiro pode definir natureza da administração Lula e sua capacidade de fazer justiça, mesmo em prejuízo dos amigos

Convém lembrar aos pessimistas que a mais recente insubordinação militar ocorrida no País envolveu um general do Exército que deu uma carteirada em Campinas para pegar um avião civil com destino a Brasília. Até por essa razão os estudiosos concordam que, felizmente, não há crise institucional no horizonte. Mas apontam para a violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa como um teste dramático para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Para o senador Jorge Bornhausen (PFL-SC), a investigação sobre a operação contra o caseiro pode ser comparada aos trabalhos para apurar os culpados pela bomba do Riocentro, atentado cometido em 1981 no Rio de Janeiro. Incapaz de investigar um atentado do porão militar que alcançava oficiais de alta patente, o presidente João Figueiredo aceitou um inquérito fraudado, que não apontava responsáveis e não punia ninguém.

Lembrando que não se deve confundir épocas nem personagens, Bornhausen observa que "a dificuldade já demonstrada pelo governo Lula para punir os autores de um crime gravíssimo é muito semelhante àquilo que se viu no Riocentro". O resultado da investigação do crime contra o caseiro pode definir a natureza íntima do governo Lula e sua capacidade para fazer cumprir a lei, mesmo quando isso implica prejudicar amigos. O inquérito do Riocentro foi um serviço dirigido e fraudado. Concluiu que o atentado foi obra de uma organização de esquerda.

Após o processo de impeachment de Fernando Collor, criou-se a convicção de que o Brasil começara a aperfeiçoar os costumes políticos. Foi uma ilusão tão grande quanto a idéia de que o fim do regime militar iria resolver, por encanto, os grandes problemas nacionais. A democracia garantiu a liberdade, que é uma mercadoria sem preço, mas deixou o resto do trabalho para pessoas de carne e osso - e isso sempre tem um preço, surpreendentemente alto, convém admitir, certas vezes.

O processo de impeachment foi só o início de uma faxina permanente. Apontado como punição exemplar, não serviu de exemplo para ninguém. Foi depois dele que Paulo Maluf montou um esquema para enviar milhões de dólares para o Exterior, conforme investigações do Ministério Público. Também nessa época o PT aperfeiçoou a caça às receitas clandestinas nas prefeituras. Para 29% da população, a corrupção é um drama mais grave do que a pobreza e a educação, diz uma pesquisa do Instituto Ipsos.

Muitos homens que ajudaram a democratizar o País e a combater a corrupção andam por Brasília como senhores cansados. Têm orgulho do passado, mas não suportam cenas do presente. Quando se pede uma idéia para enfrentar a situação, eles reagem como se já tivessem experimentado tudo e nada tivesse dado certo. Alguns perderam amigos na bandalheira e outros os viram se salvar a partir de acordos vergonhosos.

No auge da crise, no ano passado, o senador Pedro Simon (PMDB-RS) se mobilizou para impedir a abertura de um processo de impeachment contra Lula. Simon tinha certeza de que havia indícios para investigar Lula desde que Duda Mendonça contou que recebera dinheiro num paraíso fiscal. Mas preferiu dar uma segunda chance ao presidente. Chegou a acreditar que "Lula poderia limpar o governo e dar a volta por cima", conforme diz, com a voz baixa e triste. "Ele tirou ministros, mudou a direção do PT. Falava em ética, pediu desculpas. Mas não fez nada. Agora, persegue quem quer apurar corrupção. Todo mundo está fazendo barganha para tirar nome no relatório da CPI. É incrível, mas Collor teve mais dignidade."

O deputado Fernando Gabeira (PV-RJ) afirma que "o País está sendo ultrajado" com a operação do caseiro. "Isso não é ação de governo, mas de máfia, que usa a polícia, a Caixa Econômica e o que for necessário para defender seus interesses." Gabeira enxerga na operação gesto típico de Estado policial, que atravessa direitos individuais e manipula a opinião pública.

Para o ex-ministro das Comunicações e deputado Miro Teixeira (PDT-RJ), o mais espantoso foi a " naturalidade com que se cometeu um crime grave". "Seus autores não ficaram sequer preocupados em esconder o que haviam feito." Miro acha que o episódio demonstra que as autoridades têm certeza de que no Brasil pobre nunca vai procurar seus direitos. "E não vai mesmo. Não tem juiz, o processo não anda, tudo demora. Como ter democracia assim?"

Neste cenário de perplexidade e desencanto - Simon ligou-se a Lula nas greves do ABC, Gabeira era petista no início do governo, Miro é ex-ministro - ocorreu a dança da deputada Ângela Guadagnin (PT-SP) para celebrar o acordão que livrou mais dois deputados acusados no mensalão. A cena serviu para lembrar que, ao saudar a impunidade, o que se atinge é a democracia.