Título: Que aliados são esses?
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Fonte: O Estado de São Paulo, 26/03/2006, Notas e Informações, p. A3

Agricultores europeus e americanos voltaram a mobilizar-se contra a agricultura brasileira. Reunidos em Genebra, na quinta-feira, disseram que a liberalização do comércio dará ao Brasil condições para desestabilizar a agricultura mundial. Além de representantes do setor, havia também políticos. Segundo o presidente da Comissão Agrícola do Parlamento Europeu, Joseph Daul, a competitividade brasileira pode criar um "problema geopolítico". Até aí, tudo previsível e normal, como parte do jogo de pressões da Rodada Doha de negociações comerciais. Mas europeus e americanos não estavam sós.

Participaram da reunião representantes de organizações de 51 países, incluídos Índia e Indonésia, e de vários outros integrantes, segundo a diplomacia brasileira, do arco de alianças estratégicas do Brasil. Índia e Indonésia são membros do Grupo dos 20 (G-20), criado em 2003, por iniciativa brasileira, para congregar economias em desenvolvimento com interesses comuns - ou supostamente comuns - na reforma do comércio de produtos agrícolas.

Que os interesses comuns sejam limitados não é surpresa. Indianos, chineses e indonésios defendem, como os brasileiros, a abertura dos mercados do mundo rico e o abandono, pelos grandes países, dos programas de subsídios que distorcem os mercados. Indianos, chineses e vários outros, no entanto, não estão dispostos - e isso também não é novidade - a abrir seus mercados a produtores agrícolas de outros países.

A novidade é outra. É a presença de organizações indianas e indonésias num movimento contrário aos interesses comerciais do Brasil, liderado por norte-americanos e europeus.

Representantes de organizações de 15 países africanos também participaram da reunião em Genebra. Nada de surpreendente em sua presença. Afinal, muitos países da África, do Pacífico e do Caribe desfrutam de acesso privilegiado aos mercados europeus, numa relação semicolonial, e já se têm manifestado contra as pretensões brasileiras de reforma do comércio agrícola. Nem valeria a pena sublinhar esse dado, se o presidente Luiz Inácio Lula da Silva não insistisse em classificar esses países como aliados no esforço de redesenhar o mapa da economia mundial.

Também participou do encontro uma representação nicaragüense. Os delegados da Nicarágua parecem não ter sido informados de que seu país, assim como os demais latino-americanos, é um parceiro estratégico do Brasil. Ou talvez o Palácio do Planalto e o Itamaraty tenham deixado de informar esse pormenor aos nicaragüenses.

Os centro-americanos, de modo geral, parecem desconhecer esse detalhe da diplomacia latino-americana. Várias organizações de produtores da América Central, do México e da Colômbia juntaram-se, há mais de um ano, para tentar impedir o ingresso de cafés lavados brasileiros no pregão da Bolsa de Nova York. Para isso, mobilizaram até o apoio do Comitê de Relações Exteriores da Câmara de Representantes dos Estados Unidos. Este jornal noticiou, há meses, a carta enviada por membros desse comitê à junta diretora da bolsa.

Quanto ao berreiro de organizações americanas e européias, ficou dentro dos padrões conhecidos. A liberalização, segundo os europeus, só interessa aos grandes exportadores e não servirá para eliminar a pobreza no Brasil. Agora os agricultores da Europa, beneficiados por bilhões de dólares de subsídios, estão preocupados com os pobres daqui.

Os americanos chegaram a dizer que é preciso limitar os subsídios à agricultura brasileira. É uma pretensão cômica. Mais cômica, ainda, quando se considera que os maiores beneficiários das barreiras e dos subsídios europeus e americanos são grandes organizações e proprietários imensamente ricos, incluída a família real inglesa.

Seria preciso, segundo os americanos, tratar o Brasil, no comércio internacional, como país desenvolvido, em vista do poder de competição de sua agricultura. Brasileiros até disseram que essa mudança seria aceitável, se os produtores do mundo rico renunciassem aos enormes subsídios que recebem e à escandalosa proteção que lhes é proporcionada.

Quanto ao resto, apenas se confirma que o governo petista não tem idéia muito clara do que seja uma aliança estratégica. Mas isso também deixou de ser novidade há muito tempo.