Título: Governo ditatorial
Autor: Paulo Renato Souza
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/03/2006, Espaço Aberto, p. A2

Um governo ditatorial caracteriza-se, entre outras coisas, pelo uso do poder público para proteger seus membros e apoiadores e intimidar, denegrir, detratar e perseguir seus opositores. Desde o início da presente crise, quando das primeiras denúncias de um esquema de corrupção sem precedentes em nossa História, o comportamento do governo do presidente Lula mostra sinais inequívocos de autoritarismo e desapreço pela democracia. Os valores republicanos, que enchiam a boca de muitos petistas, há muito foram relegados ao esquecimento. O episódio mais recente da investigação pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) e pela Polícia Federal nas contas e nos telefones do caseiro Francenildo Santos Costa constitui-se numa cabal demonstração dessa atitude ditatorial do atual governo federal.

Apesar de todas as tentativas dos partidos do governo e seus aliados de negar a corrupção sistêmica praticada pelo atual governo, há elementos que são inegáveis, porque comprovados ou confessados. Um desses aspectos não negados, nem mesmo pelos que foram absolvidos na pizzaria congressual, é o esquema do chamado "valerioduto", para transferir dinheiro para alguns parlamentares. O dinheiro era sacado em espécie, em visitas ao Banco Rural, por esposas, assessores e afins de alguns parlamentares. Em outras ocasiões, malas e cuecas cheias de dinheiro foram flagradas em várias inspeções rotineiras em nossos aeroportos. No total, esses esquemas movimentaram centenas de milhões de dólares que foram, de uma maneira ou outra, sacados na boca do caixa de instituições financeiras.

O Coaf é um órgão, subordinado ao Ministério da Fazenda, ao qual cabem a supervisão e investigação sobre movimentações financeiras suspeitas de constituírem lavagem de dinheiro, evasão de divisas ou sonegação fiscal. Uma de suas principais fontes de informação é precisamente a supervisão das movimentações financeiras em espécie. Todos os bancos e instituições financeiras são obrigados a informar ao Banco Central, e este ao Coaf, quaisquer retiradas ou depósitos em dinheiro vivo acima de R$ 10 mil. Ou seja, seria impossível movimentar as centenas de milhões de reais em dinheiro do valerioduto e outros esquemas similares sem que houvesse o conhecimento e a conivência das autoridades responsáveis por esses órgãos.

Desde o início da atual crise alimento a convicção de que, sendo o Coaf um órgão do Ministério da Fazenda, deveria o ministro Antonio Palocci ser não apenas convocado a depor nas CPIs, mas também indiciado por gestão pelo menos negligente, ao não ter coibido ou ao menos investigado tamanho fluxo de dinheiro vivo em nossas instituições financeiras. Eis que agora o poderoso Coaf se volta para investigar os R$ 25 mil transferidos para a conta do caseiro Francenildo.

A investigação ao caseiro Francenildo também mobiliza nossa Polícia Federal, que segue seus passos, investigando seus telefonemas e encontros. É bom lembrar que foi essa mesma Polícia Federal que prendeu de maneira espalhafatosa empresários acusados de sonegação fiscal em São Paulo e invadiu escritórios de advocacia, supostamente para evitar a destruição de provas, mas deixou livre até hoje o sr. Marcos Valério para queimar à nossa vista, por meio do noticiário na TV, muitas provas de seu esquema de corrupção. Demais recordar também que os dirigentes do Banco Rural, que desde a CPI do Banestado freqüenta as páginas de denúncias por fraudes financeiras, não foram importunados, apesar de todas as evidências, confissões e provas recentes.

As ações contra o caseiro Francenildo têm um objetivo confessado por algumas autoridades do governo atual, tentando desqualificá-lo como culpado de algum crime. Outros governistas são mais audaciosos: tentam mostrar que ele foi "treinado por alguém", nas palavras do ministro Luiz Marinho, para fazer o depoimento que fez e incriminar o ministro Palocci. Ora, esses detalhes não têm a menor importância no caso. Mesmo que o caseiro tenha sido treinado pela oposição, mesmo até que - no pior cenário possível - tenha sido beneficiado financeiramente por sua denúncia, isso não tira o mérito de suas declarações como testemunha. Acaso não é a própria Justiça que se serve de testemunhos de criminosos como parte das provas contra terceiros? São eles menos válidos do que outros testemunhos? O caseiro poderia ou não ter cometido irregularidades em sua vida pessoal, mas isso não cala seu testemunho de que viu o ministro na casa e, portanto, que ele cometeu o crime de perjúrio ao mentir sobre o fato no seu depoimento à CPI, o que caracteriza crime de responsabilidade, mormente para uma autoridade de seu quilate.

Há, porém, outro objetivo, este inconfessado, na ação do governo e da polícia: intimidar outras pessoas que podem também haver testemunhado as mesmas incursões do ministro à tal casa. Pode ser que familiares do próprio caseiro, caseiros de casas vizinhas ou moradores da mesma rua tenham também algo a dizer. Eles seguramente pensarão dez vezes antes de fazê-lo.

O Supremo Tribunal Federal impediu o depoimento do caseiro na CPI. Enquanto isso, ele já foi chamado diversas vezes para depor na Polícia Federal a portas fechadas. Seu testemunho interessa a toda a sociedade e, por isso, ele deve voltar à CPI. A CPI dos Bingos tem, sim, de saber dos movimentos dos assessores do sr. Palocci que freqüentavam a tal casa. Afinal, alguns deles vêm sendo mencionados em acusações desde o episódio Waldomiro Diniz, passando pelo "lobby" em favor da Gtech.

Em nome da democracia em nosso país, a sociedade brasileira exige que o caseiro fale a portas abertas, seja através de uma revisão da decisão do Supremo, seja por uma reconvocação do Congresso.

Paulo Renato Souza, economista, foi ministro da Educação

no governo Fernando Henrique Cardoso, gerente de Operações do BID, reitor da Unicamp e

secretário de Educação de São Paulo no governo Montoro