Título: "Com a bomba, nada nos deterá"
Autor: Gustavo Sierra
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/03/2006, Internacional, p. A20

Cinza, verde escuro e, na maioria, definitivamente negros. Como se houvessem recebido uma ordem, todas as mulheres no avião começaram a pôr os xales na cabeça. Uma loira de cabelo tingido e com um corte moderno vestiu um hejab, o manto preto das muçulmanas no estilo das atrizes de Almodóvar quando se disfarçam de freiras. O capitão havia anunciado que estávamos nos aproximando de Teerã. De uma hora para outra, os passageiros perderam as cores que traziam de Paris. Entrar no Irã é acinzentar-se um pouco.

De qualquer forma, muita coisa é aparência. Uma vez que se chega aos bairros ricos de Teerã, que ficam no norte, sobre as montanhas de Alborz, as cores voltam a aparecer. São percebidas com todo seu esplendor por trás dos mantilhas que caem descuidadas da cabeça das moças ricas e debaixo dos guarda-pó (diminutos no caso delas) que os aiatolás da revolução que sacudiu este país há 27 anos ordenam que usem. Nesses bairros há mais lojas de maquiagem que em Roma. As vitrines exibem saias vaporosas e curtas, calças compridas justíssimas e sapatos com salto de dez centímetros. Mas tudo isso será usado em casa, oculto do público. Nada pode ser explícito. Aqui se honra a antiga tradição persa do ta-aruf, a insinceridade cerimonial. A aparência, o engano para não quebrar as regras. O ta-aruf é um culto no Irã.

A outra face está no sul de Teerã, nos bairros pobres, onde reinam os imãs e o presidente ultraconservador Mahmud Ahmadinejad tem enorme popularidade. É dali que provém a maioria dos homens e mulheres que vão ao centro diariamente para manifestar-se contra a publicação das caricaturas de Maomé ou a favor do programa de independência em energia nuclear.

São os do sul, todos eles com barba e roupas escuras, elas com seu chador (manto) negro que as cobre da cabeça aos pés, que enchem a esplanada da Universidade de Teerã para ouvir a oração das sextas-feiras. Hoje (sexta-feira, 10 de março) fala o ex-presidente Ali Akbar Rafsanjani - conhecido como "o Tubarão" - e existe um renovado fervor nacionalista. "Temos o direito inalienável de um desenvolvimento nuclear independente", diz o aiatolá Rafsanjani, e a multidão se levanta de suas almofadas. "Morte aos EUA ... Morte a Bush", gritam, levantando os punhos cerrados. Dois dias antes, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) havia encaminhado seu relatório ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, em meio às pressões dos Estados Unidos para impor sanções rigorosas contra o Irã por não interromper o programa nuclear que o regime iraniano ocultou durante 18 anos.

Aqui em Teerã, todos garantem que se trata de um programa para fins pacíficos, mas em Washington estão convencidos de que o Irã tem toda a tecnologia e capacidade para produzir em um período de dois a dez anos uma bomba atômica. Ali Ashgar Soltanieh, um representante iraniano na AIEA, diz aos quatro ventos que o "Irã pode produzir toneladas de urânio enriquecido". E um dos estudantes que sai depois da oração gritando palavras de ordem com uns 50 companheiros, todos basijis (jovens militantes da revolução e tropa de choque), expressa o que está camuflado no desafio do Irã ao mundo: "Aqui, neste lugar, neste momento está se produzindo o renascimento islâmico. Há um ressurgimento do nosso fundamentalismo muçulmano desde a Palestina com o Hamas até as ruas do Iraque e o Líbano com o Hezbollah. E aqui é o epicentro, no Irã com Ahmadinejad. Quando tivermos a bomba nada poderá nos deter", disse Massoud Sadegh.

Em 1979, a Revolução Islâmica que derrubou o xá Reza Pahlevi foi controlada pelos reformistas e o voto popular elegeu Mohamed Khatami, que governou durante dez anos enfrentando o sucessor de Ruhollah Khomeini e atual líder supremo da república, o aiatolá Ali Khamenei. Mas a década de abertura só beneficiou as classes média e alta, que ganharam liberdades, mas não trouxe nenhum benefício às massas populares.

Foi assim que surgiu o obscuro prefeito de Teerã, Mahmud Ahmadinejad, que ganhou as eleições do ano passado, surpreendendo a todos. "Ahmadinejad é um filho da revolução, um veterano da guerra com o Iraque (1980-88) e um místico. Está convencido que só terá o poder temporariamente, até o retorno do imã Mahdi, que desapareceu há mais de mil anos. Acredita que sua única função é preparar o povo para o regresso de Mahdi", explica um editor de um jornal de Teerã que pede para não ser identificado por razões de segurança e conhece o presidente há muitos anos.

Ahmadinejad provocou uma comoção mundial quando negou a existência do Holocausto e afirmou que Israel deveria ser varrido do mapa. Mas os pobres do Irã o adoram. Desde que assumiu o poder, vem distribuindo milhões de toneladas de arroz e açúcar, mantém artificialmente baixo o preço da gasolina, aumentou notavelmente os salários dos funcionários públicos e reparte com todo o país os subsídios da Fundação Khomeini. "Que Alá proteja sempre Ahmadinejad. É o único que se lembrou dos pobres", disse Youssef Tarighat, enquanto trabalhava numa carpintaria no centro da cidade.

"O que o presidente está fazendo é gastar um fundo de US$ 14 milhões que o governo tem para emergências. Ontem me disseram que já gastou quase tudo. Quando ficar sem um rial (a moeda iraniana), sua popularidade vai acabar e aí vamos ter um problema grave, porque o único modo de manter-se no poder será agitando a bandeira nacionalista contra a agressão americana", explicou nessa mesma noite um economista de um organismo financeiro internacional que encontrei na casa de um diplomata brasileiro.

Ainda assim, ninguém sabe muito bem quem tem o verdadeiro poder neste país. Há muitas instâncias de governo e contrapoderes. Ahmadinejad teve de sofrer durante meses até que o Parlamento aprovasse um ministro do Petróleo. E todos os analistas concordam que o verdadeiro poder econômico ainda reside em boa parte nos antigos donos das lojas do mercado central, as mesmas famílias que governam o país desde sempre.

Por enquanto, não se vê nenhuma crise nas ruas de Teerã. Os 11 milhões de habitantes parecem ter saído em multidão para comprar os presentes para o Noruz, o ano-novo iraniano celebrado em 21 de março. Os preços das frutas, verduras e vestuário são comparáveis aos de Buenos Aires. Os eletrodomésticos têm preço internacional. Tudo isso causa um engarrafamento de trânsito terrível. Não existe horário nem rua na qual as pessoas não se deparem com um congestionamento que pode detê-las durante horas. Isso sem contar que os iranianos dirigem como os russos. A média de mortes por acidentes de trânsito atinge um recorde mundial - 300 vítimas por semana.

De qualquer forma, o consumo não consegue satisfazer as aspirações de uma grande maioria de jovens. Setenta e cinco por cento da população têm menos de 30 anos. Neste segmento, o desemprego alcança 32%, segundo estatísticas oficiais. "Moro em Isfahan (400 quilômetros ao sul) e lá o ambiente é opressor. Os religiosos nos perseguem constantemente", diz Mehdi, um engenheiro eletrônico que veio a Teerã para um tratamento médico com a mulher, Sahar. No mesmo Parque de Melat encontro Maral, uma garota de 21 anos que diz que quer ser modelo e veste um guarda-pó justo, óculos moderníssimos e jeans arregaçados. "Já me levaram presa duas vezes por andar vestida assim. Insultaram-me e me fizeram pagar uma multa. Mas não me importa. Vou continuar me vestindo assim até que me matem", diz, enquanto posa para uma foto com graça. Logo depois, ponho-me a conversar com cinco garotas que usam o véu negro tradicional. São estudantes universitárias da Escola de Arte e asseguram que não se sentem aborrecidas por ter de sair às ruas cobertas. "O chador nos protege", disse Barareh. "E assim os homens não ficam tentados", acrescentou Samayeh.

Mas o problema da falta de liberdade parece estar causando muitos danos a amplos setores dos jovens. Oficialmente, há 2 milhões de drogados. Aqui se consegue uma injeção de heroína por US$ 3. E o haxixe é vendido como caramelo. O ópio faz parte da tradição dos persas há 3 mil anos. Os maiores fornecedores dessas drogas, o Afeganistão e o Paquistão, são países vizinhos. "Os jovens precisam ter experiências que aqui não têm. Quando falo com eles, vejo que estão tristes, aborrecidos, sem saída, com problemas com a família, que lhes quer impor tradições antigas. E isso os leva às drogas", comenta o diretor do Centro Nacional Iraniano para Estudo da Dependência Química da Universidade de Teerã.

Outros jovens preferem desafiar a censura. Khandan Ghaderi, uma escultora de 27 anos, se atreveu a expor nus femininos, que estão proibidos. "Consigo que me convidem para abrir uma exposição restrita, que durará apenas um dia", diz. "Uma noite mais e fecham a galeria", explica Amin Aslani, a dona da Galeria Etemad, nas proximidades do Bulevar Shahrazad.

Chegam uns 50 ou 60 intelectuais iranianos e alguns diplomatas. As figuras são abstratas, não têm o mínimo vislumbre de erotismo, mas o Ministério de Assuntos Religiosos e Culturais não permite que esse tipo de evento seja público. Mais uma vez, aparece o ta-aruf. Pode ser feito em particular e de forma restrita. "Não vou me impor limites. Gosto de trabalhar as formas femininas e o faço", diz a escultora Khandan.

Os jovens liberais como ela desafiam os limites e, sobretudo, burlam a censura na internet. Há mais de cem sites políticos, sociais e culturais em farsi e em inglês feitos em Teerã. Vou visitar dois rapazes do teheranavenue.com. "Fecham jornais e revistas, mas no ciberespaço nos deixam trabalhar tranqüilos. E espero que não haja um confronto maior com Bush, porque vão começar a nos censurar", comenta Sohrab, o diretor da empresa cujo pseudônimo é sidewalk (calçada em inglês).

Claro que indo para o sul, deixando as montanhas e chegando ao deserto, em poucos quilômetros tudo volta a mudar. No túmulo do aiatolá Khomeini, uma impressionante estrutura de milhares de metros e enormes cúpulas que continua sendo construída desde a morte dele, em 1989, sou parado por um basiji, um jovem revolucionário. Ele me diz que está disposto a dar a vida pela memória do imã e da revolução. "Essas coisas que viu em forma indecente no norte de Teerã não são iranianas. Estão absorvidas pela cultura do verdadeiro império do mal que são os EUA. Eles não vão defender o Irã, mas eu sim. Vou lutar com minha fé islâmica", diz enfaticamente Ali Khazai, que tem cerca de 17 anos e usa uniforme militar. Esses jovens estão convencidos de que haverá um confronto inevitável com os EUA.

O mesmo acontece no cemitério próximo de Beheshte Zara, onde estão enterrados milhares de soldados mortos na guerra contra o Iraque (houve 1 milhão de mortos entre os dois países nos oito anos de conflito) e onde o fervor nacionalista parece ainda maior. Dos alto-falantes saem constantemente marchas revolucionárias e a mães vão todos os dias limpar os túmulos dos filhos.

Numa passagem obscura repleta de fotos dos mártires surge Sayed Hossein Danaie. É um veterano de guerra que faz trabalhos voluntários no cemitério. "Já lutamos uma guerra e você pode ver aqui quantos de meus camaradas morreram. Mas estamos dispostos a travar mais 101 guerras. Os EUA não nos dobrarão. Eles têm a bomba, mas nós temos a fé e isso é mais forte do qualquer outra coisa", disse com emoção na voz.

Os alto-falantes continuam com sua música bélica. O cheiro de açafrão emanado dos incensos que as mães queimam sobre os túmulos me traz à lembrança os aromas doces do norte de Teerã. A brisa mistura tudo, odores e sons, como acontece com esta sociedade complexa que busca uma saída.