Título: O grande sertão de Rosa está desaparecendo
Autor: Daniel Piza
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/03/2006, Nacional, p. A12,13

As veredas estão secando por causa de eucaliptos e os vaqueiros são poucos e quase só andam de moto

O sertão de João Guimarães Rosa (1908-1967), o sertão caracterizado por vaqueiros e veredas, está desaparecendo. A região do noroeste mineiro que o escritor conheceu em viagens e levou para seus livros se mostra hoje, 50 anos depois da publicação de sua obra-prima Grande Sertão: Veredas, bastante transformada. Grande área do cerrado local foi tomada por eucaliptais, que roubam água das veredas, e a população de vaqueiros é muito menor e já não toca boiadas a cavalo de uma fazenda para outra.

Nas estradas se vêem mais caminhões transportando sacos de carvão, empilhados como um trapézio invertido, do que bois. O carvão é feito a partir da madeira do eucalipto, queimada em amplas carvoarias que são como ilhas terrosas no meio de um mar de árvores, por funcionários que um dia foram ou seriam vaqueiros. O carvão segue para siderúrgicas do sul do Estado, como Gerdau e Cosisa, onde é usado para fabricação de ferro gusa, insumo básico do aço. É possível percorrer mais de 30 km de estradas de terra vendo apenas eucaliptais ao redor - nada do cerrado nativo nem uma vereda.

"De longe a gente avista os buritis, e já se sabe: lá se encontra água", escreveu Rosa. Mas isso é cada vez menos verdade. As veredas, que o autor definiu como "oásis do cerrado", são um ecossistema úmido, de solo arenoso, no qual nasce a fileira de buritis, provendo literalmente sombra e água fresca para pessoas e animais da região. Algumas chegam a ter quilômetros de comprimento. Um lençol freático sempre percorre a vereda de ponta a ponta e aflora em sua zona central, muitas vezes conectado por córregos; a superfície brejosa é também ocupada por gramíneas. Além da água, os habitantes locais, os "veredeiros", aproveitam o buriti para fazer doce, licor e óleo com seus frutos, de propriedades medicinais, e artesanato com suas folhas fibrosas.

"As veredas têm papel fundamental na manutenção da fauna do cerrado, funcionando como local de pouso e de reprodução para as aves e como abrigo e fonte de alimentação também de animais terrestres", diz a geóloga Dirce Ribeiro de Melo, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que no momento faz doutorado sobre o tema. Maritacas, araras, tamanduás e tatus podem ser encontrados nas veredas, mas em número cada vez menor. É muito bonito ver uma vereda de sua cabeceira ou de um ângulo mais alto que permite acompanhar o buritizal como um rio verde cortando os vales do cerrado, pintado de manchas alaranjadas que são os cachos de coquinhos. Desenhadas no horizonte, as folhas espalmadas do buriti (Mauritia vinifera) fazem pensar num verso de Rosa, que diz que seu segredo é querer o brejo e querer o céu.

O noroeste de Minas, onde se desenrola a história de Riobaldo e Diadorim (veja mapa nesta página), é a área de maior ocorrência de veredas no cerrado brasileiro. A professora Dirce informa que "o Brasil não tem catalogadas e mapeadas todas as veredas que possui". Mas diz também que 100% das veredas em meio a florestas de eucaliptos estão "parcialmente degradadas", em função do assoreamento causado pelas plantações. Calcula-se que cada eucalipto consuma sete litros de água por dia e, portanto, quando está próximo de uma vereda, suga-os do lençol freático, secando o leito e muitas vezes matando buritis, apesar de suas raízes profundas. Como esse tipo de eucalipto permite corte de seis em seis anos, seu crescimento é rápido e reduz a vazão de água na vereda.

Ao refazer quase integralmente o trajeto da famosa viagem de 1952 em que Rosa acompanhou durante 12 dias uma boiada na comitiva do vaqueiro Manuelzão (morto em 1997) - desde o local conhecido como Barra do rio De-janeiro, ao norte de Três Marias, até Araçaí, subdistrito de sua cidade natal, Cordisburgo -, confirmaram-se os relatos de que muitas veredas cercadas por eucaliptos estão secando. O guia, José Oswaldo dos Santos, que todos conhecem por Brasinha, um comerciante cordisburguense de 52 anos, lembra uma frase de Manuelzão: "Eucalipto nem cobra gosta nem marimbondo."

Na Vereda São José, que Rosa considerou a mais bonita entre todas as que visitou em 1952, hoje a cabeceira está assoreada; as folhas estão secas e a água só começa a minar mais adiante. A outra extremidade, por sua vez, foi represada, para irrigar milharal perto, e com isso muitos buritis morreram afogados. Em outra vereda, sem nome, o leito inteiro virou areia e as árvores já caíram quase todas. É comum ver a floresta plantada a cerca de 30 ou 40 metros de distância, quando a legislação estadual exige pelo menos 80. Especialistas, como a professora Dirce, dizem que nem mesmo a faixa de proteção prevista em lei é suficiente para não causar estragos. "Faltam estudos experimentais."

Recuperar as veredas não é difícil, do ponto de vista ambiental. Mas Dirce lembra que não basta afastar os eucaliptais, pois as veredas fazem parte de um ecossistema amplo, o cerrado, que está "fragmentado" e correndo risco em muitas partes do território brasileiro: "É preciso criar corredores ecológicos em meio aos eucaliptais, com recuperação das faixas de cerrado no entorno das veredas, e interligá-las aos fragmentos de cerrado ainda existentes." Os 10% de cerrado nativo que as empresas normalmente preservam, segundo ela, são insuficientes para preservação da fauna e da flora da região.

A geografia era muito importante para Rosa. Em Grande Sertão: Veredas, há diversas referências a lugares dos "Gerais", como dizem os sertanejos de Minas, e a nomes de pássaros, árvores, etc. Pesquisadores como Willi Bolle e Dieter Heidemann tentam cartografar o romance em relação ao mapa real. Mas Rosa também mudava e inventava nomes e posições. Um desses que só existem em sua imaginação é o Liso do Sussuarão, espécie de inferno que os jagunços são obrigados a cruzar na história. Outro é A Vereda Morta, onde Riobaldo faz o pacto com o diabo. O que Rosa, que profetizou na história Buriti que os vaqueiros um dia sulcariam terra para eucalipto, não gostaria de saber é que hoje Vereda Morta é nome que pode batizar muitos lugares reais.