Título: Cidade se une pelo gravatazeiro
Autor: Cristina Amorim
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/03/2006, Vida&, p. A28

Comunidade de Boa Nova, no interior da Bahia, se organiza para preservar espécie de ave ameaçada de extinção

Histórias açucaradas de conservação são raras. Assim devem continuar por algum tempo, até que a resistência às palavras "mudança" e "sustentável", usadas na mesma frase, seja quebrada. Mas, pelo menos no interior da Bahia, Boa Nova parece ser literalmente um presságio.

Essa pequena cidade, a 440 quilômetros de Salvador, guarda uma espécie em extinção, o gravatazeiro. Ave miúda, foi esquecida pelos biólogos por quase 200 anos. Recebeu afinal atenção quando já era quase tarde demais: entrou na "lista vermelha", rol dos animais que estão com os dias contados se nenhuma ação preventiva for tomada.

Com isso, cresceu o interesse de biólogos pelo gravatazeiro, assim como o de observadores de aves que rodam o mundo atrás dos animais que estão para desaparecer.

Talvez essa atenção tardia fosse suficiente para evitar que ele sumisse. Mas, no caso do gravatazeiro, a repercussão apareceu onde não era esperada. Ele foi adotado pela população de Boa Nova como símbolo da cidade, quando o normal seria a oposição a qualquer tentativa de preservação que possa envolver mudanças de hábito e choques culturais. "Não é o tipo de reação que vemos muito", admite Priscila Napoli, que trabalha na Sociedade para a Conservação das Aves do Brasil (Save) num projeto para salvar a ave.

CIDADÃO HONORÁRIO

Priscila lembra de seus primeiros contatos com a cidade. Um dos primeiros passos foi reunir líderes comunitários, como o padre e representantes da prefeitura para explicar por que lutar por um bichinho tão pequeno. "De repente, eles entenderam o que aquele monte de estrangeiro ia fazer lá. Eram ornitólogos e observadores de aves que saíam às 4 da manhã e voltavam às 22 horas, sujos e cansados, sem falar uma palavra em português. Os moradores achavam que eram pessoas envolvidas com mineração, que faziam prospecção!", conta ela.

Quebrar a desconfiança inicial foi a chave para o envolvimento voluntário. Em pouco tempo, cartazes do projeto se proliferaram, o "carro de notícias" espalhou a novidade com alto-falantes pelas ruas e a secretária de Assistência Social, também mulher do prefeito, colocou o tema na sala de aula.

A ave virou modelo para um artesão local, que entalha em madeira cópias do macho e da fêmea com fidelidade. Virou marca registrada: a prefeitura batizou um plano de educação e recuperação ambiental com o nome da ave, que recebeu o 3º lugar em um concurso de projetos socioambientais - há quem defenda que o nome deu, sim, uma forcinha. Virou referência: um rancheiro colocou uma placa indicando que tem gravatazeiro no terreno dele.

"Boa Nova não tem nada para oferecer, só a biodiversidade. As pessoas estão muito a fim de trabalhar e de se envolver", conta Priscila. A empolgação adquiriu feições mais sérias: dois proprietários de terra estudam criar Reservas Particulares do Patrimônio Natural. O Ministério do Meio Ambiente analisa criar uma unidade de conservação. E o projeto inicial começa a render conhecimento científico, passo essencial para que o gravatazeiro possa sair, um dia, da lista vermelha.

NOVIDADES NA MATA

O biólogo Edson Ribeiro Luiz, contratado da Save, se mudou para Boa Nova em agosto com a missão inicial de estudar a biologia básica do bicho.

Ele descobriu que a ligação com o gravatá, tipo de bromélia terrestre, é maior do que o nome sugere. O ninho fica no chão, no meio de um aglomerado delas, formando uma fortaleza natural para proteger os filhotes. O alimento parecem ser os insetos que vivem perto da planta e sob as folhas caídas, e é a água represada na planta que mata a sede da fêmea. O biólogo começou a marcar as aves para contar a população - as estimativas giram entre 1 mil e 2,5 mil.

O que Luiz não esperava era se tornar um porta-voz da ave e, por tabela, de Boa Nova. Dá aula nas escolas, fornece dados sobre conservação e reúne atores locais e organizações ambientalistas regionais. "A resposta da população é excelente."

O biólogo também estuda os motivos que colocaram o gravatazeiro na berlinda. Boa Nova fica no coração da mata do cipó, transição entre mata atlântica e caatinga. Tem uma vegetação peculiar, baixa, seca e lenhosa. Se a feição não é de abundância, os números mostram o contrário: só de aves, Boa Nova tem 274 espécies em seu território, mais do que a Nova Zelândia.

PONTO CRÍTICO

A ameaça vem dos dois lados, com a degradação sistemática da caatinga e da mata atlântica. A pobreza é predominante na região e a única fonte de energia e de calor é a madeira tirada da mata, que alimenta os fornos e as fogueiras de São João.

Salvar o gravatazeiro, portanto, é um processo que passa necessariamente pela mudança do hábito. Só que as alternativas - reflorestamento ou importação de gás - são caras demais para serem bancadas somente por quem mora em Boa Nova, que vive basicamente do funcionalismo público.

Dinheiro de fora é essencial, seja de fontes tradicionais, como governos, seja de parcerias com ONGs do setor privado. A população mostra sinais de que prefere abrir as portas para o investimento verde a aceitar o de outras fontes, como da mineração - atividade que não é vista com bons olhos por lá.

A população de Boa Nova comprou a idéia. Mas é preciso mais do que conscientização para que vire fato. Histórias doces de conservação são raras, mas Boa Nova pode ser mais um exemplo delas.